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Rajada na ideia

 

Norton Rocha

 

Corro. Corro desesperado. Corro como quem não tem nada a perder, apesar da imensidão destes meus sonhos. São apenas quatro, armados, irados e vestidos com a manta do estado, prestes a meter uma bala na minha cabeça. Juro que senti algo raspar a manga da camisa. Logo aquela dada por ela. Logo aquela que prometi cuidar e usar apenas nos momentos especiais. A propósito, este é um momento especial. Sinto-me prestes a ter meu fim consumado. E ainda penso como vou me explicar, enquanto desvio rapidamente em direção a Maré. O Alemão eu sempre soube que não era lugar pra qualquer um. Aqui filho chora e a mãe não vê. E a cadeia é carinhosamente chamada de “escola”.

 

Fico confuso quando ouço falar dos tempos da ditadura, quando o Estado sequestrava, assassinava e torturava pessoas inocentes. Afinal, desde quando este verbo é passado? Por aqui as histórias se repetem. Essa tal pacificação mais parece um AI-5 enrustido. Agora é policia pra tudo quanto é lado, cuidando, é claro, das nossas integridades física e moral. A despeito do peso desta AK-47 sobre meus ombros, carrego comigo as imagens que construí a partir das lembranças dos livros e das histórias de algum professor. Não lembro bem seu nome, mas lembro de que falava das turbulentas relações entre os militares e quem os contrariava. A última vez em que vi um morador contrariar a ordem de um PM, foi ironicamente a última vez em que o vi. Coisas deste tipo acontecem incessantemente. É como se brincassem de ditadura, mas sem aquela parte em que os militares assumem seus atos mais nefastos.

 

Quando me dou por aliviado, enfim seguro, escuto aquelas hélices. Eles realmente não se dão por vencido. Juram que acabando comigo vão exterminar com o tráfico e com tudo o mais que existe de ilegal por aqui. Será possível? Por enquanto, o que vi foi apenas uma transferência de poderes. O que o mercado chamaria de fusão, eu chamo de milícia. E realmente, eu teria plenas condições de conseguir um emprego e sair da favela. Largar o crime e construir minha carreira, distante destas que cheiro compulsivamente. O helicóptero se aproxima, me localiza e, como em Apocalipse Now, começa a disparar rajadas incessantes em minha direção. Sempre questionei o papel do Estado em minha vida, mas aquilo, aquilo transcendia as possibilidades de se construir qualquer tipo de relação entre nós.

 

Nunca fui de estabelecer muitos limites, apenas levo minha segurança na cintura. No entanto, esta guerra não foi proposta por mim. Quiçá algum coronel descontente, ao avaliar o status quo, percebeu o valor e a importância de se hegemonizar pela brutalidade, pela imposição e pela articulação entre poderes, conceitos totalitários. O estado das coisas hoje por aqui, percebo, é absolutamente o reflexo do que deixamos fazer com nossa gente. Quando penso numa polícia desmilitarizada, penso em pessoas dispostas a construir algo. Algo capaz de compreender a sociedade como reflexo social e cultural de suas decisões e, portanto, parte intrínseca a cada pedaço de nosso desenvolvimento enquanto nação. Largo minhas armas hoje se o Estado entender o mal que faz a quem não tem forças para enfrentá-lo.

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