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Preto, branco ou cinza?

 

Lucas Rocha

 

"A verdade é um ponto de vista", já alardeava Friedrich Nietsche. A relatividade presente na frase do filósofo alemão nos mostra o cuidado que devemos ter com opiniões apoiadas pela maioria da população, sem ser submetida a uma análise crítica. Afinal, se toda verdade é um ponto de vista, o pensamento crítico deve ao menos provocar a contestação dessa verdade.

 

A atual opinião acerca do que costumamos chamar de golpe de 1964, ocorrido há exatos 50 anos, é extremamente negativo. Um regime que perseguiu a liberdade de expressão, caçou artistas e pensadores por todo território nacional e geriu a política nacional a bel prazer. Olhando retrospectivamente, o ponto de vista nos apresenta uma história obscura, um período cuja cor mais apropriada para ilustrar é o preto.

 

Porém, e se ajustássemos o nosso olhar cronologicamente, não em retrospectiva? Como ficaria? O contexto da época era bem singular. O mundo bipolar, marcado pela guerra indireta entre os Estados Unidos e a então pomposa União Soviética se dava em solo de outros países. Via de regra, os confrontos se davam nos bastidores, no jogo político, e as armas - comprometimento de investimentos e empréstimos - eram silenciosas, todavia certeiras. Ao invés de destruir uma nação, elas prometiam leva-las a um patamar acima do encontrado na época.

 

O bom relacionamento brasileiro com os americanos não era novidade na época. Por mais que a política do Itamaraty sempre tivesse sido de "amigos de todos", em alguns momentos era necessário tomar uma posição. Foi assim anos antes no período de Vargas, que agradou enquanto pôde nazistas e americanos, rivais na segunda grande guerra, mas no momento de pular do muro, a cama elástica do Tio Sam pareceu um refúgio seguro.

 

E em 1964 não foi diferente. A classe média brasileira não fez alarde com os militares "protegendo" o poder do Estado. Tanto que, na cabeça de muitos, a situação era apenas transitória. Com o prolongamento da embate político entre capitalismo e socialismo, os militares continuaram no poder até o processo de fim da União Soviética, que coincidiu (será mesmo uma coincidência?) com o início do processo de abertura política brasileira. Não obstante, 12 meses e um dia antes da queda do muro de Berlim, Ulysses Guimarães levantava a então aprovada nova Constituição da República do Brasil, em um dos gestos mais simbólicos já feitos no parlamento brasileiro.

 

O período que se encerrava ali havia transformado o Brasil em todos os campos. Retomando a frase de um anti-heroi do cavaleiro das trevas, "aquilo que não te mata te transforma", a mudança pela qual o Brasil passou foi significativa.

 

Com os empréstimos tomados juntos aos bancos do bloco capitalista, o Governo Brasileiro financiou a expansão da infra-estrutura brasileira. A criação de algumas estatais, que seriam privatizadas no governo FHC, como a Eletrobrás e Telebrás, esta última responsável por implantar orelhões nas ruas, por exemplo.

 

O setor automotivo, sempre beneficiado pelo Palácio do Planalto, ganhou um novo tipo de combustível pelo programa Pró-alcool, implantado a partir de 1976, além de ter várias rodovias sendo construídas pelo governo militar. O setor energético brasileiro viu a construção de grandes hidrelétricas, sendo a de Itauipú, no Paraná, a maior expoente desse processo.

 

O setor educacional, cuja população tanto reclama, viu a expansão de vagas, principalmente pelo crescimento de instituições particulares de ensino. "Os governantes militares (...) estabeleceram as condições legais que viabilizassem a transferência de recursos públicos para a rede particular", afirma Renata Machado de Assis em A educação brasileira durante o período militar: a escolarização de 7 a 14 anos.

 

A lista de realizações dos militares enquanto comandantes não só de tropas, mas do país, não para por aí. A lista é extensa, entretanto longe de justificar os erros incansavelmente apontados e intrínsecos a regimes dessa natureza.

 

Até na questão do cerceamento da liberdade de expressão, podemos tirar um ponto positivo. Os obstáculos enfrentados por nossos músicos os transformavam em verdadeiros artistas. Afinal, a crítica dos versos de Renato Russo, Chico Buarque e outros é um exemplo de obra de arte, muito diferente do atual barulho do Lepo-Lepo que estoura nas rádios mais populares entre os jovens.

 

Sob essa perspectiva, percebemos que o período de 1964-1988 pode ser ilustrado não por um preto como inicialmente levantado. Tampouco por um branco como os números aqui apresentados possam sugerir. A cor que resulta do período é mais um cinza, da cor das nuvens de uma tempestade.

 

Agora, como saber se essa tempestade mais destruiu casas e vidas na cidade ou mais fez germinar os alimentos que abastecem essa cidade? Depende do seu ponto de vista.

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