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O valor da memória

 

Nasci em 1983. Um ano como qualquer outro, não fosse o simbolismo da data para nosso país. A primeira manifestação pelas Diretas Já foi promovida em 31 de março daquele ano. Exatamente um ano e dois dias depois de meu nascimento, em 16 de abril de 1984, ocorreu o último grande comício pelas Diretas Já e também a maior manifestação popular já ocorrida em terras tupiniquins. Portanto, gosto de pensar que sou filha da revolução! Nascida em meio a tempos turbulentos, tempos decisivos, tempos que modificariam (graças a todos os santos) para sempre a história deste país.

 

Sou filha de pais que viram seus direitos roubados pouco a pouco. Que já não podiam comprar o que queriam, falar o que pensavam, viver como desejavam, tampouco podiam confiar nas informações que lhes chegavam pelos meios. Viviam acuados pelo medo, com medo dos próprios medos, com o grito preso na garganta, com a indignação embalando o sono. Filha de pais que jamais imaginaram que uma leve instabilidade política poderia provocar uma guinada tão grande nos rumos de um país, uma guinada que conduziu por caminhos escuros nossa mãe gentil. Filha de pais que viram amigos, parentes e meros conhecidos sumirem da noite para o dia sem jamais mandar notícias, sem jamais voltarem ao seio de suas famílias, sem que ninguém jamais soubesse o que de fato lhes aconteceu.

 

Sou filha de pais que, junto a uma multidão, explodiram pelas ruas pedindo o fim de tamanho cerceamento. Sou fruto deste ambiente, deste espírito, deste medo, deste grito, desta vitória. Educada para saber que direitos não devem, nem podem ser tolhidos, para saber que todo tipo de expressão humana é um direito, que todos somos iguais e que ninguém tem o direito de dizer o que é direito. Nasci do lado direito da coisa, o lado que luta para que o direito jamais se renda à direita fundamentalista ou à esquerda extremista. Ensinada desde a mais tenra idade que direitos são construídos para preservar a humanidade em nós.

 

Neste primeiro de abril comemora-se, (ainda que não possamos dizer que isto é algo passível de comemoração), 50 anos de Golpe Militar. 50 anos do fatídico momento que mudou, completamente, a noção de liberdade naquela geração, a noção de direitos e deveres na geração seguinte, e a noção de democracia na geração atual. Uma noção que pouco a pouco se dissipa por um terrível lapso de nosso povo: o “esquecer-se” do valor das memórias. Os filhos desta geração se esquecem pouco a pouco, (ou muitas vezes sequer sabem), o que significaram e significam os 22 anos em que este país viveu acuado. Percebo isto em frases como está, que já ouvi algumas vezes na última semana: “quem é Vladimir Herzog?” Sequer sabem que ele não é, ele foi.

 

Como é possível construir uma democracia sólida, palpável (porque não podemos dizer que nossa democracia está historicamente solidificada), se as pessoas se esquecem, desaprendem, desmerecem, ou pior, jamais entendem o preço pago por ela? Tal memória não pode ser esquecida, enterrada, desvalorizada. Assim como fui filha/fruto da necessidade de lutar pela preservação da liberdade e dos direitos comuns, tenho a obrigação de perpetuar este conhecimento, este espírito.

 

O Canal da Imprensa desta quinzena não poderia tratar de outro tema que não este. 50 anos de Golpe Militar no Brasil. O que foi? O que provocou? Quem comandou? Quem torturou e quem foi torturado? Quem censurou e quem foi censurado? Quem matou e quem foi morto? Como a mídia se portou frente aos horrores do regime? Como ela foi tratada por ele? Nosso intuito não é outro além de preservar o valor desta memória. E mais, relembrar que é desta memória, da memória do trauma, que nossa democracia se renova, se fortalece, se constrói dia-a-dia. Que venham outros 50 anos em que “inventemos nosso próprio pecado” e “morramos por nosso próprio veneno”, sem a necessidade de implorarmos para que afastem de nós qualquer “cale-se”.

 

 

Andréia Moura

Editora-chefe do Canal da Imprensa

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