
"Não somos os mesmos
Giselly Abdala
Não é de hoje que é sabido que os “jornalões” da ditadura, bem como seus jornalistas, sofreram abusos de uma censura prévia que subordinava e feria a autonomia do exercício jornalístico da época. Exercício este que, sob o peso das mãos de ferro, se tornou quase um fazer artístico, que exigia habilidade e sagacidade para desviar das mordaças impostas pelos militares. José Reinaldo Carvalho conhece bem este cenário. O jornalista, escritor e militante comunista baiano, esteve ativo na imprensa dos anos de chumbo desde os 18 anos, quando ingressou na Universidade. Entendendo que “a lógica da ditadura é usar cada vez mais a força”, dedicou seis anos de sua vida a produzir conteúdo destinado à mobilização de estudantes contra o militarismo. E garante que, 50 anos depois, nem os jornalistas, tampouco a sociedade, são os mesmos.
Canal da Imprensa: Comece contando um pouco sobre a sua experiência jornalística nos anos de chumbo, e o jornal que escrevia
José Reinaldo: Veja, minha experiência durante a ditadura foi como militante. A prática de um jornalismo militante do movimento estudantil, que durante um certo período foi submetido à clandestinidade. Nós elaborávamos jornais para mobilizar os estudantes na luta contra a ditadura. Este jornal existe até hoje, e se chama “A classe operária”. Durante a ditadura militar, “A classe operária” saia regularmente, mas o jornal era clandestino. Era elaborado clandestinamente, impresso clandestinamente e distribuído clandestinamente.
C.I: Como fazia para driblar a censura?
Carvalho: Não driblávamos a censura porque éramos clandestinos, tidos como fora da lei. Então não tínhamos esse problema. Daí o risco que se corria. Entre as prisões que houve, muitas eram para estourar os aparelhos onde funcionavam as gráficas desses partidos, em casas clandestinas. Nós éramos alvos no sentido de que eles buscavam descobrir onde se organizavam essas pessoas. Quem tinha problemas com a censura eram eventuais jornalistas democráticos, que queriam escrever e expressar alguma opinião sobre a ditadura e não podiam porque e os veículos em que trabalhavam tinha a figura do censor.
C.I: Sobre a imprensa alternativa...
Carvalho: É importante mencionar a imprensa alternativa. Não militei diretamente com eles, mas estivemos juntos. Nós tivemos vários jornais progressistas na época, principalmente nos anos 70, que sofreram muito com a censura. Cito aqui três: o Jornal Opinião, o Jornal Movimento e o Pasquim. O último foi um jornal político e humorístico.
C.I: Nesse período você exercia o papel de jornalista, mas era uma função mais de engajamento, de militância. Como era a relação com os outros jornalistas que trabalhavam nas redações?
Carvalho:O jornalista, assim como a intelectualidade de uma maneira geral, se engajaram na causa democrática. Inclusive a ditadura fazia uma campanha dizendo que as redações dos jornais estavam infiltradas de comunistas, e que a mídia estaria a serviço do comunismo. O que não era verdade. A verdade é que haviam muitos jornalistas democráticos, que no exercício da sua missão profissional, procuravam exercer uma militância contrária à ditadura.
C.I: Mas muitos desses jornalistas trabalhavam para veículos que não eram contrários à ditadura. Como agiam estes veículos? Você acredita que esta postura tenha, de certa forma, ajudado a sustentar a ditadura?
Carvalho: O que precisa ser evidenciado é que a mídia, como tal, como instituição e os grandes jornais que temos até hoje, tomaram o partido da ditadura. E foram cúmplices da ditadura. Antes do golpe, estes mesmos jornais da época fizeram uma campanha pelo golpe. Essa chamada “Marcha da família com Deus pela liberdade”, que mobilizou dezenas de milhares de pessoas em março, há quatro dias do gole, pedindo para haver o golpe como manobra para legitimá-lo, aquilo foi fomentado e instrumentalizado pela mídia. Assim como a mídia incitava as lideranças políticas civis de direita para se juntar ao golpe. Ela sustentou o golpe, sustentou a ditadura.
C.I: E elas sentiram o reflexo disso mais tarde?
Carvalho: Sim, o que aconteceu depois foi que aí a ditadura foi fechando e se tornou um regime cada vez mais totalitário, instituindo a censura. Pior que a censura, instituiu a censura previa. As matérias só podiam sair nos jornais depois que um censor da policia militar ou algum órgão do exército, que ficava dentro da redação, lia e autorizava. Isso feriu a autonomia da empresa jornalística, que era aliada da ditadura, mas se julgava em um papel político mais autônomo, não subordinado.
C.I: Acredita, então, que a mídia se surpreendeu mais tarde com o AI-5? Será que eles esperavam que iria surgir essa opressão?
Carvalho: Não, acredito que ninguém esperava. Mas o problema é que a lógica de uma ditadura é usar cada vez mais a força. Porque quando você implanta a ditadura em um país há reação. E houve reação democrática, armada inclusive. Quando há essa polarização, o poder ditatorial exerce violência contra o povo. E ao exercer a violência contra o povo, atrapalha todos os setores da sociedade. Então digamos que os que se surpreenderam, brincaram com o fogo. Aquela questão de o feitiço virar contra o feiticeiro. Mas não posso julgar se imaginavam ou não.
C.I: E isso impulsionou que estes mesmos jornais “mudassem de lado”?
Demarice:Sim, o fato é que quando isso aconteceu (o AI-5, a censura, o terrorismo de estado, a tortura, a guerra aberta contra o povo), essa mesma mídia, que foi cúmplice com a ilusão de que eles iriam fazer uma ditadura e depois entregariam o poder aos civis, por ser vítima da censura prévia, acabou se opondo também à ditadura. E tentou se compor como um setor civil político de direita, mas uma direita que não queria uma ditadura, uma direita que queria uma reforça desse regime. De modo que hoje, 50 anos depois, uns produzem editoriais fazendo autocrítica, dizendo que foi errado apoiar a ditadura.
C.I: A industria intelectual e artística foi parte significativa da resistência. Foram torturados, censurados. Não é um contracenso que hoje alguns deles tenham mudado de lado e defendam um sistema que tanto atacou a liberdade de imprensa e de expressão?
Carvalho: Mas veja, acho que hoje, nestes setores, tem muita gente que continua coerente, liberal convicta, alguns carregam ainda o sonho do socialismo. Não vejo isso como um vermelho negro, mas como matizes. Tem setores que foram contra a ditadura, que tiveram essa ilusão que você se refere, mas outros não. Acredito que isso vá do pensamento de cada um, cada classe social e cada setor da sociedade.
C.I: Existe, ainda hoje no Brasil, um grupo de pessoas que defende a volta da ditadura e apoia esse modelo. Na sua opinião, o que gera esse tipo de sentimento nesta parcela da sociedade, de querer um sistema totalitário que controle “à mão de ferro” o sistema da oposição no país?
Carvalho: Eu acredito que esse setor é muito minoritário. Essa passeata que tentaram organizar aí, através das redes sociais, foi um fiasco. Não tem figuras expressivas defendendo isso, então não creio que seja uma tendência dominante ou forte. Eu acho que a classe dominante brasileira da direita pretende recuperar o poder, mas não por um golpe. A maioria dos partidos hoje não tem compromisso com a ditadura. Pelo contrário, todos têm repudiado o assunto. Até essa mídia empresarial que é ultra reacionária, antidemocrática, defende valores retrógrados, mas elas não se atrevem a defender a ditadura. Ninguém tem coragem, hoje em dia, de defender a volta de uma ditadura.
C.I: Qual a diferença de falar para o público militante da época de 70 e para o público militante de hoje?
Carvalho: O militante daquela época não podia ter um partido comunista de massa, então você não tinha audiência e se organizava em grupos. O fato de o militante da época ser um homem ou uma mulher que sabia que poderia ser morto ao virar a esquina, ao ir distribuir um material, dava a eles uma visão mais engajada pela causa. A temática era ideologizada, até mesmo intelectualizada. Hoje é uma mensagem ligada aos problemas da nossa época. Hoje nós não falamos em derrubar uma ditadura. Nós temos que lutar pra consolidar um governo democrático. Não falamos mais em luta armada. Lutamos pelo passe livre, pela cultura nacional popular. Os problemas de hoje são outros. O militante de hoje é outro. Também tem a questão da tecnologia. A mesma pessoa é receptora e emissora de mensagens. Não se faz mais apenas o jornalismo profissional, mas também um jornalismo nas redes sociais.
C.I: E os jornalistas, são os mesmos?
Carvalho: Não, a diferença já começa na redação, que é mais profissionalizada. Também pelos aspectos da qualificação, em que consistem os cursos de jornalismo. Nesta época, os jornalistas têm uma noção boa de técnicas e também, com certeza, uma outra cabeça do que se tinha nos anos 60 e 70.