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Um dia para esquecer

 

Ruben Holdorf*

 

Não pretendo fazer das linhas seguintes uma análise crítica comparativa da mídia durante o regime dos militares instalados em 1964, falidos em 1985, quase mortos em 1992, enterrados vivos em 2010 e injuriados em 2014. Seria um desserviço, pois muitos pesquisadores, jornalistas e historiadores já dissertaram com propriedade a respeito desta temática. Eu era criança e minhas memórias se restringem à visão das informações recebidas na época.

 

Nasci em um país cujo sistema de governo era o parlamentarismo. Ele havia sido implantado na tentativa de bloquear as ações do presidente da República e para dirimir uma crise entre as instituições públicas que se arrastava desde o imbróglio que levou à morte outro presidente uma década antes.

 

Em 1962, o primeiro-ministro já era um político de influência no cenário nacional. Vinte e um anos depois, ele seria eleito presidente da República pelo Colégio Eleitoral, mas não tomaria posse e morreria no mês seguinte, “coincidentemente” em 21 de abril. Durante um mês de 1962 eu fui um cidadão privilegiado, tive o prazer que os brasileiros de 1985 não tiveram. O chefe de governo era Tancredo Neves. Mas essa informação só se tornou significativa duas décadas adiante. Como eu afirmei, minhas lembranças permaneceram compartimentadas em um ambiente infanto-juvenil, de adolescência e início da vida adulta.

 

Primeiros contatos

 

O fato de residir em Curitiba em um tempo de dificuldade para a rede de comunicação e de pouca, ou nenhuma, importância política concedida à capital paranaense pelo poder centralizado no Rio de Janeiro e depois em Brasília, deixou-me alienado das circunstâncias ligadas às práticas da ditadura. A primeira vez pela qual tive conhecimento do que acontecia no país ocorreu em sala de aula, no primeiro ano do ensino médio. Estudava no Colégio Barddal e este concorria em uma gincana junto a outras escolas da cidade. Uma das tarefas determinava encontrar um exemplar do jornal soviético Pravda (Правда). Ao cogitarem a busca pelo periódico oficial do partido comunista, as autoridades da “inteligência” brasileira trataram de perseguir os estudantes e censurar a prova. Realmente, um perigo para a segurança pública e para a integridade territorial com “tantos alunos falando o russo” em Curitiba e desejosos de interpretar a linguagem cifrada, produzida pela KGB, inserida nas entrelinhas da narrativa do tosco diário! Pela primeira vez eu percebi quão mesquinhas e imbecis eram as atividades do regime de exceção.

 

Rotular de mesquinhas e idiotas não significava que os militares e seus asseclas se comportavam ingenuamente. Dois anos depois, em 1979, o professor de OSPB, Marshall Gonçalves, revelou-nos que havia um veículo da Polícia Federal estacionado em frente ao cursinho, cujos agentes o haviam interrogado e agredido dias antes. Este foi o ano quando o presidente João Batista Figueiredo, ao visitar Florianópolis, recebeu um tapa na orelha de um aluno da UFSC e, à frente das câmeras, deu voz de prisão ao agressor e seus companheiros. O fato acabou desmentido por certos historiadores comprometidos com as esquerdas. Mas eu lembro a cena veiculada em todos os canais televisivos.

 

Certa madrugada acordei e caminhei em direção ao quarto dos meus pais, pois havia percebido as luzes dos abajures acesas e conversas a respeito de situações nos quartéis – meu pai deixara o uniforme da Aeronáutica pouco antes do golpe. Meu avô materno era ex-militar do Exército e seu filho, meu tio, servia no corpo de saúde da Base Aérea. Um primo de minha mãe chegara ao posto de tenente, enquanto outro tio trabalhara na Marinha. Portanto, as informações circulavam em nossa família com muita frequência, mas apenas entre os adultos. Naquela ocasião ouvi, às escondidas no escuro corredor, pela primeira vez a expressão “tortura no porão” sob o conhecimento de...

 

Fase da inocência

 

Bons tempos! Ótima infância para quem desconhecia que outras crianças, na mesma faixa etária, estavam sendo perseguidas, ameaçadas, torturadas ou se encontravam e fuga e angústia diante do sofrimento dos pais e parentes próximos. Será que eu, ou meus colegas, teria perfeita compreensão dos fatos se isso me fosse relatado aos sete anos de idade? O que eu poderia fazer? Por que informar uma criança sobre situações tão adversas? Qual seria o sentido pedagógico de tal atitude? Como eu reagiria? Choraria, gritaria? Ficaria com medo? Entraria em êxtase ou depressão? Por que forçar o amadurecimento da inocência? Sei que muitos idiotas tentarão me contrariar, mas prefiro que busquem fazê-lo pessoalmente, se é que terão suficiente coragem.

 

Sob um ponto de vista dos tempos da infância, para mim a ditadura do governo não se manifestou com toda a clareza. Depois de estudar a história do país e compreender o porquê das ações políticas, sociais, econômicas, educacionais, religiosas, esportivas, hoje eu assevero com plena convicção que o regime militar se refletiu enquanto autoritarismo não somente no plano político e socioeconômico, mas também no perfil das famílias, na estrutura das escolas, nas diversas associações e instituições públicas e privadas e mesmo na composição das confessionalidades religiosas. A inocência se manifestou ao correr atrás de uma bola sem medo de ser atropelado por filhos de políticos ou ter o par de tênis roubado por funqueiros; sujar-se na terra ao brincar de esconde-esconde e tomar água de mangueira sem correr o risco de ser levado ao “médico” cubano no postinho público de saúde; usar a criatividade para desenvolver atividades lúdicas e escolares; curtir a praia com os irmãos e primos todo o final de semana, pois a gasolina era de baixíssimo custo e a Petrobras ainda não desenvolvera a arte da rapinagem; passar as férias na casa dos primos em São Mateus do Sul sem medo de ser atacado por pedófilos; rodar por toda a Base Aérea de Guaratinguetá atrás de aventuras sem perceber nenhuma anormalidade.

 

Tempo de percepção

 

Nem tudo dura para sempre e chegou o tempo de entender os efeitos de sentido. Foi-se a era do pão e circo da Copa do Mundo de 1970 e alcança-se o ano – 2014 – de outro eclipse popular. Ao olhar para trás, compreendo por que meu pai adquiriu o primeiro televisor. Ele havia sido contagiado pelo efeito da Copa do México. Depois da vitória, o sonho do milagre brasileiro obstruiu a capacidade reflexiva dos adultos, impedindo-os de contemplar com transparência os fatos desenrolados nos bastidores do governo Médici, para muitos o mais cruel repressor dos opositores. O futebol anestesiou a mente para também detectar uma esquerda bandida, assassina e interesseira em tão somente conquistar o poder com o objetivo de tomar as mesmas decisões da direita e usufruir dos mesmos indevidos privilégios gozados pelos militares.

 

O dia 31 de março significava um feriado prolongado, desde o dia 29, aniversário de Curitiba. Hoje, 31 de março não tem mais significado. A lembrança mais perceptível é a cicatriz deixada na consciência, cujas causas jamais serão confessadas, pois envolvem nomes, pessoas e instituições. Reflexão? Não! Esquecimento.

 

*Ruben Holdorf é doutor em Comunicação e Semiótica e coordenador do curso de Jornalismo do Unasp.

  
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