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Ditadura extirpou da sociedade uma geração brilhante

 

Luís Fernando Assunção*

 

Oswaldo Pfützenreuter já era velhinho quando ainda batia de porta em porta dos órgãos oficiais para saber do paradeiro do filho. Não desistiu até morrer. Queria porque queria saber onde estava pelo menos o corpo do filho Rui, já que não nutria absolutamente nenhuma esperança de que ele ainda estivesse vivo A cada repartição, a mesma informação lacônica nos documentos: “Nada consta”. Rui, jornalista, fora preso em 14 de abril de 1972 e levado ao temido DOI-Codi em São Paulo. Era o período mais duro do regime, durante o governo do general Garrastazu Médici. A família chegou a ser comunicada da prisão. Mas seu Oswaldo não se conformou. No fim da vida, entretanto, teve finalmente a notícia que buscava: Rui havia sido morto e enterrado como indigente em uma vala do cemitério de Perus, na capital paulista.

 

Rui Pfützenreuter tinha uma mente brilhante. Jornalista de formação, nascido na cidade de Orleans, sul de Santa Catarina, costumava enviar para sua família, desde São Paulo, onde já vivia, “cartas gravadas”. Eram mensagens faladas, gravadas em fita K-7 e mandadas pelo Correio para seu estado natal. Tive acesso a algumas dessas cartas e impressionei-me com a coerência de sua fala, especialmente na análise da situação política e econômica do Brasil. Como jornalista, ia sempre a fundo nas questões, procurando contextualizá-las e diluí-las para o bom entendimento do senso comum. Era seguidor do pensador argentino J. Posadas, que por sua vez seguia a linha trotskista, de Leon Trotski. Por certo Rui ainda poderia estar escrevendo artigos em alguma revista ou jornal brasileiros. No entanto, foi morto como indigente, sem identidade, e seus restos mortais jogados em uma vala comum.

 

O Brasil perdeu muitos cérebros brilhantes durante os anos de chumbo. E quando essa data completa 50 anos precisamos repensar de forma crítica o que perdemos ao longo do regime ditatorial. Talvez a maior perda - além de um hiato democrático que respinga em nossa sociedade até hoje – tenha sido a de homens e mulheres de pensamento erudito, com ideias progressistas de desenvolvimento político, econômico, social. A maioria dos dirigentes que comandavam a resistência contra os militares era composta de intelectuais e pessoas saídas do seio das universidades, como artistas, jornalistas, advogados. Era gente que tinha muito para dar ao Brasil. Era gente que poderia, quem sabe em anos, dar um impulso para cima que o País sempre precisou e nunca conseguiu. Mas suas vidas foram dilaceradas como se dilacera bicho no matador. Sem julgamento, sem direito a defesa, de maneira tosca e vil.

 

Falo isso por que vivi os estertores do regime. Sei que mesmo depois de 1979, quando o general Figueiredo prometia “democracia gradual”, apoiado na capenga Lei da Anistia, ainda nos colégios secundários e universidades os estudantes eram emudecidos. Não podiam gritar, protestar, nem mesmo escrever textos que não seguissem a cartilha militar. Se assim fizessem, eram expostos ao ridículo por professores e diretores, tratados como “subversivos”. Fui tratado assim por alguns anos, como muitos estudantes que ainda lutavam para reestabelecer os grêmios estudantis nas escolas. Mas mesmo que isso ainda fosse uma forma de resistência, não chegava perto daquilo que nossos antecessores haviam vivido durante o final da década de 60 e meados da de 70. De acordo com levantamento feito pelo “Dossiê Brasil Nunca Mais”, 7.367 pessoas foram atingidas diretamente pela repressão de 1964 a 1979. Perto de mil – na maioria jovens em começo de carreira ou estudantes – foram assassinados. Os corpos de muitos jamais foram encontrados.

 

O exército da resistência ao regime era composto majoritariamente por jovens, que foram interrompidos em suas tentativas de montar um Brasil melhor, mais igualitário e mais humano. Foram freados por uma forma de agir que sempre frea a criatividade, a alegria, o pensar: o autoritarismo. Eram julgados sem julgamentos, condenados sem serem culpados, mortos sem razão nenhuma. O ex-cardeal arcebispo de São Paulo Dom Paulo Evaristo Arns sabia exatamente que as coisas aconteciam assim. Em um dos muitos depoimentos que deu assim que falácia militar foi desmantelada (ainda não totalmente, infelizmente, já que militares permanecem impunes e vivendo sob a proteção do Estado até hoje), Arns comprovou a falsidade das confissões a que os jovens eram submetidos, assim que presos. “Numa noite chegou na minha residência um juiz militar. Lá pelas tantas, mostrou dois documentos onde presos políticos confessavam a mote de uma mesma pessoa. Ele não resistiu e me disse: imagine o senhor a situação psicológica, e quem sabe física, de quem se declara assassino sem o ser!”. Foi dessa forma desonesta e sangrenta que uma geração brilhante foi extirpada para sempre do Brasil.

 

*Luís Fernando Assunção é doutor em Ciencias da Comunicação e professor do curso de Jornalismo do Unasp.

  
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