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Abaixo a liberdade

 

Como O Estado de S. Paulo lidou com a censura e quais foram as marcas deixadas na sociedade

 

Aline Lüdtke

 

Num mundo polarizado, não existe muro estável o suficiente sobre o qual se posicionar. Sendo assim, as tentativas de neutralidade do governo de Jânio Quadros, seguido por João Goulart (1961-1964), foram interpretadas como apoio ao Comunismo. Influenciados pelos Estados Unidos, rapidamente os militares assumiram o controle da situação, instaurando o regime de ditadura. A partir daí, qualquer movimento considerado suspeito era punido.

 

Informação é poder. E, naqueles dias, poder demais. Poder ameaçador. Não demorou muito para os detentores desse poder serem “colocados em seu lugar”: professores, filósofos, artistas, estudantes, e, é claro, jornalistas. Disfarçada e sorrateiramente, a censura foi se instaurando até se tornar legítima, em 13 de dezembro de 1968, com o Ato Institucional número 5 (AI-5). Veículos de comunicação, como jornais e revistas eram alvos de ataques, repressões. Muitos foram fechados. Entre os que “sobreviveram”, encontra-se o Estadão.

 

Embora tenha apoiado a deposição do presidente João Goulart, seu posicionamento a favor da ditadura não durou muito tempo. A mudança de lado custou a liberdade de expressão. Um dia antes da oficialização do AI 5, o jornal teve seus exemplares impedidos de circular, pois continham um editorial considerado subversivo. “Instituições em frangalhos”, por Júlio Mesquita Filho, acusava a ditadura de ter posto um fim à democracia. Nesse momento, o veículo declarou que não faria autocensura, adequando-se ao regime. Para eles, o governo que deveria se encarregar de encaminhar censores para dentro das redações que avaliassem o conteúdo posteriormente publicado.

 

Nos chamados “anos de chumbo”, os mais repressivos da ditadura (entre 1968 e 1974), com o fim do governo Médici, o Estado de S. Paulo imprimiu páginas que marcaram a resistência contra a limitação da liberdade de expressão. Em vez de substituírem o conteúdo censurado por matérias ou notícias irrelevantes, favoráveis ao governo decidiram manter as lacunas em branco. Assim, era claramente visto que “alguém” interferira. De forma irônica, por vezes publicavam poemas (oras trechos de Os Lusíadas, oras de Camões) ou mesmo receitas.

 

É possível migrar a um cenário parecido, no qual o Ministério da Verdade era responsável por modificar quaisquer informações e dados que não correspondessem ao que eles queriam que fosse “verdade”. A Polícia do Pensamento vivia patrulhando qualquer “traidor” do governo. Na educação, o incentivo era para que as crianças e jovens deletassem até mesmo seus pais. Cidadãos que desenvolviam autonomia de raciocínio e pensamento, colocando-se contra o regime, eram “vaporizados” e sua existência apagada dos registros.

 

É bem verdade que um romance como o de George Orwell requer uma interpretação e análise muito mais profunda. Mas pinçando alguns aspectos da sociedade proposta no enredo e os relacionando com as intenções do autor, é possível traçar um paralelo com a relação entre liberdade de expressão e poder. Na trama, as classes mais baixas eram alienadas pelo fornecimento de entretenimento barato. Também é possível entender que, pela falta de informação e memória, não eram capazes de raciocinar a fim de lutar por mudanças significativas. Assim aconteceu na ditadura militar brasileira, quando se tentou apagar dos registros, ou pior, não registrar o que fosse contrário à “verdade” que o governo queria que todos acreditassem. No entanto, a pior consequência da ditadura foi privar os veículos de comunicação de exercerem seu papel fundamental, na tentativa de dirigir a opinião e pensamento da população.

 

Alguns anos se passaram até que a abertura política “lenta, gradual e segura”, proposta por Ernesto Geisel em 1974, restaurasse a liberdade de expressão da forma como propunha em seu lema. Mas após 20 anos marcados pelo medo, ameaças e insegurança, algo ficou atrofiado. A sociedade protagonizou movimentos como Diretas Já, e, mais recentemente, uma série de reivindicações por melhorias políticas. Entretanto, ainda parece faltar algo que legitime a luta pelos direitos. Como é possível ver, há pessoas que se aproveitam da aglomeração para depredar e agredir. Outros defendem interesses pessoais. Outros ainda defendem o que fará bem para toda a população. Duas gerações reprimidas deixaram sequelas graves à sociedade brasileira.

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