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A erva e a velocidade

 

“Solta, deixa fluir?”. As garras da correria pós-moderna e o consumo da maconha na ótica de dois amigos na capital paulista

 

Guilherme Cavalcante

 

- Fala Djow, tudo certo? Como foi de viagem?

 

- Ah cara, tô meio que na correria para hoje. Fiquei atolado de trampo que não fiz durante a viagem. Tá difícil relaxar. Quanto à viagem, foi ok.

 

A semana tinha reservado uma viagem a negócios no Chile para Ian. O que, para ele, estava longe de ser um sossego. Ian acabara de se formar em Administração e trabalhava em uma holding na área de construção civil. Seu amigo, Felipe, era colega de muitos anos, apesar de ainda estar cursando uma graduação. Diferente de Ian, era mais ‘pé no chão’. Trocava as viagens de férias ou eventos chiques na Água Branca para estar em uma roda com sua galera, curtindo um bom baseado.

 

- Cara, você precisa dar uma descansada. Correr tanto assim não te leva a lugar nenhum.

 

- É, falar isso é fácil, se você soubesse o que tenho para fazer...A vida não é só maconha não cara.

 

- Como se eu só fizesse isso. A divindade deu 24 horas pra gente irmão, você acha que isso não é o suficiente para realizarmos o necessário e ainda aproveitarmos um pouco?

 

- Não me parece...se o dia tivesse umas 48 horas, quem sabe?

 

Aquela semana marcava o aniversário de um ano da aprovação e regulamentação do comércio da cannabis e de seus derivados no Brasil. Iniciada no Uruguai, em 2014, rapidamente a medida se espalhou pela América Latina e pela Europa. No Ocidente, eram poucas as nações que ainda mantinham a guerra contra a erva. Apesar de reduzir as ações do tráfico e aliviar o sistema carcerário no País, a maconha ainda gerava uma certa dissenção entre setores da sociedade. Ian fazia parte dessa categoria. Era desconfiado que só da erva, nunca tinha consumido e via com certo temor o consumo ‘desenfreado’ da maconha, inclusive o do próprio amigo. Já com Felipe o caso era diferente. O jovem sempre brigou pela legalização do comércio da planta. Estava na linha de frente das marchas da maconha que tomaram as capitais brasileiras na primeira metade da década. Fumava em pequenas quantidades todos os dias. Gostava de tranquilidade e fugia da correria do dia a dia.

 

- Tá quase tudo pronto – exclama enquanto ajeita sua mochila – vou comer aqui rapidão e sair. Você vai querer um sanduíche natural com refri Felipão?

 

- Opa prepara um pra mim aí enquanto termino de dar um pau [aproveitar a pontinha final do cigarro] aqui.

 

- Rapaz, já falei e repito: você devia largar isso aí. Acho que a maior besteira que fizeram foi aprovar esse negócio. Agora até na avenida, em pleno meio-dia, esse povo tá fumando. Todo mundo com cara relaxada, parece até que não sabe mais o que é trabalho. Que saudade de ver aquele ritmo de trampo que todo mundo tinha há algum tempo!

 

- Você não acha que esse era exatamente o problema? Sabe, meu caro, às vezes é bom relaxar um pouco! Por isso, já falei e repito: que tal dar uma puxada?

 

- Primeiro, não sou doido. Segundo, já está aqui o nosso lanche e, terceiro, tenho que sair em pouco menos de dez minutos.

 

- Sempre na correria né? Tá, vamo comer!

 

Ian mal tinha chegado e o dia já estava preenchido, tinha que enviar seu relatório para o chefe ainda naquela tarde. Fora as reuniões, com previsão de término para altas horas da noite. Felipe, seu colega de quarto, já estava mais tranquilo, estudava computação pela manhã e trabalhava por conta programando sites e aplicativos para empresas. Não era uma rotina fácil, no entanto.

 

- Pronto, deu a hora. Tenho que ir.

 

- E aí, não vai entrar na onda mesmo e fumar uma comigo? Relaxa alguns minutos aí.

 

- Cara você insiste tanto que eu vou dar uma tragada nisso aí, mas só uma. Tô com pressa.

 

- Ah, mas aí não rola então.

 

- Uai, por que não? Você vive me pedindo pra aproveitar uma aí contigo depois que legalizaram e vem com isso? Ah meu pai, era o que faltava.

 

- Não adianta cara, enquanto você está submerso nessa vida louca aí fica impossível aproveitar. Você não gostar e vai continuar a falar mal. Pensa bem, você já viu alguém fumando uma erva estando no meio da agitação do dia a dia? Acredite, se todo mundo fumasse maconha, você nem estaria nessa correria toda...

 

Sem responder e com cara pensativa, Ian se virou, abriu a porta e caminhou em direção às escadas. Enquanto ainda estava no campo de visão de Felipe, ouviu uma última frase:

 

- Lembre-se meu caro, maconha e velocidade não têm nada a ver!

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