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Gaza é lugar de gente

 

Se narrar a história de pessoas em guerra já é um desafio, Joe Sacco levou isso a outro patamar: contou tudo durante uma guerra, com o formato de história em quadrinhos. Os palestinos ganharam "voz" através de seus desenhos e narrações.

 

Thamires Mattos

 

Há muito tempo atrás, o jornalismo deixou de tratar o ser humano como alguém individual e singular. Hoje, a maioria dos veículos de comunicação faz acepção de pessoas - apenas porque uma é rica, a outra pobre; uma tem influência, a outra não; uma tem alto grau de escolaridade, a outra tem a sabedoria adquirida na vida ou nenhum dos dois. O importante é que, sem fazer distinção de cor, etnia, gênero, preferência religiosa e política, gente é gente. Todos têm direitos. Todos sofrem. Só que uns sofrem mais.

 

Nos dois livros da coleção "Palestina", Joe Sacco narra a saga de pessoas comuns como eu e você (e, afinal, quem não é uma pessoa comum?) de maneira estonteante. A história em quadrinhos revela detalhes da vida na faixa de Gaza e os pensamentos de seus moradores. Publicados em 2000 e 2005 no Brasil, continuam muito atuais.

 

O autor aborda temas políticos como torturas feitas aos árabes pelos israelenses e dá uma pincelada na formação do Estado de Israel - o ponto da virada para muitos palestinos que perderam suas terras e agora vivem em lugares precários. Eles tentam, de diversas formas,  ganhar a vida de maneira honesta, mas, para o governo de Israel, são sempre suspeitos de ligações com alguma facção.

 

Se narrar a história de pessoas em uma guerra já é um desafio, Joe Sacco levou isso a outro patamar: contou tudo durante uma guerra, com o formato de uma história em quadrinhos. A riqueza de detalhes impressiona. Feições caricatas e falas autênticas são a marca de Sacco, que expôs ao mundo um lado diferente do conflito. Os palestinos ganharam "voz" através de seus desenhos e narrações.

 

A vez do Pensamento Civil

 

No primeiro livro, "Palestina: Uma nação ocupada" faz menção à facções como o Hamas e a Frente Popular Palestina e declara que estas já ocupam lugar de destaque. Um civil relata, na página 74, que "o Hamas não é um verdadeiro partido islâmico, porque eles defendem a violência". Já na sequência, em "Palestina: na Faixa de Gaza", uma mulher israelense ressalta o problema moral da ocupação de territórios por Israel, porém deixa claro que o "terrorismo palestino" não pode continuar. Segundo ela, essa é a razão para a ofensiva de Israel, que também não está certo ao se utilizar de artefatos bélicos poderosos para recuperar o controle das terras.

 

Conforme a leitura dos livros prossegue, a diferença entre a opinião pública e a opinião do público é notável. Muitas vezes, o governo de Israel e a liderança palestina mostraram justificativas para atos injustificáveis. O povo, já treinado para não acreditar em qualquer um, é cético quanto ao cessar-fogo definitivo, mas procura acreditar que a paz, pelo menos em pequenas comunidades, é possível. Muitos judeus não concordam com a ocupação, e a grande maioria dos palestinos não pertence a nenhum grupo terrorista. Eles simplesmente querem viver tranquilamente e com direitos iguais, como qualquer ser humano merece. Esse conceito se resume nas palavras de um palestino idoso, presente no primeiro livro da coleção: "Você é gente, eu sou gente, todos somos gente, todos viemos do pó...".

 

A grande verdade é que a vida continua e se mistura com a guerra. Joe Sacco narra histórias de amizades acabadas, romances impossíveis e infâncias deturpadas pelo conflito. Para alguns, a guerra já é a vida - não há como fazer distinção. As crianças já nascem neste ambiente hostil e cheio de tragédias. Levam tiros, são feridas, perdem familiares. "Cada casa aqui tem alguém na prisão, alguém que morreu e alguém que foi ferido. Isso é infância?", desabafa um palestino, personagem do segundo livro.

 

A coleção "Palestina" é o retrato de um povo que sofre pela ação de grupos extremistas (que se misturam entre eles) e de outro povo, que também não dá o braço a torcer. Para mergulhar na história das pessoas que moram na Faixa de Gaza e entender a realidade de perto, nada melhor do que um jeito criativo e ousado. É assim que o lado crítico pode ser acionado em quem está assistindo de longe. Através de iniciativas como esta.

 

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