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Midiocracia

 

Aline Ludtke

 

Sobre Midia e America Latina, o Canal da Imprensa entrevistou Ruben Holdorf, jornalista e profissor universitário. Holdorf possui Doutorado em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, dois mestrados e graduou-se em Jornalismo pela UFPR. Como jornalista, atuou nO Estado do Paraná, na Tribuna do Paraná, e fez parte da equipe de criação do Paraná Online. Como docente, lecionou no curso de Jornalismo da UFPR e do Centro Universitário Adventista de São Paulo (UNASP). Também escreveu dois livros e atualmente é coordenador do curso de Jornalismo do UNASP.

 

Nesta conversa ele fala um pouco sobre suas pesquisas. Sua tese de doutorado questiona a abordagem da mídia sobre alguns dos presidentes latino-americanos como figuras de democracia em cada país e nos leva a perguntas como: que “democracia” é essa defendida nos veículos de comunicação?

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Canal da Imprensa: O surgimento da imprensa no Brasil se deu mais de trinta anos depois da primeira publicação em território latino, no México, e ainda como uma espécie de diário oficial da metrópole. Mesmo após a independência, no entanto, a mídia brasileira retratava os países vizinhos como ameaças à democracia. Por que as relações da mídia com as nações “de fora” do continente eram privilegiadas e como isso explica os valores por trás dessa postura? 

 

Ruben Holdorf: Na realidade, a mídia brasileira não pautava os países vizinhos, tampouco havia uma discussão em torno de democracia. O governo brasileiro percebia nos vizinhos hispânicos uma ameaça ao império, à monarquia e não à democracia. O governo monárquico contemplava nas republiquetas fronteiriças um impedimento ao projeto imperial, assim como as repúblicas hispânicas sul-americanas viam no Brasil um risco à independência de cada país. O regime brasileiro era centralizador, elitista, autoritário, privilegiando uma minoria, número diminuto se comparado à Argentina, Chile e Uruguai. As redações darão espaço à América Latina apenas no século 20. O primeiro correspondente brasileiro foi João do Rio, do Jornal do Brasil, para a Europa e Estados Unidos. Ao verificar se havia recortes que poderiam justificar a ojeriza aos países vizinhos como herança de tempos mais remotos, concluí que esse pensamento não se ajustava à prática da imprensa no império. Os chamados correspondentes não eram repórteres, mas colaboradores esporádicos. As principais políticas editoriais que assinalaram a imprensa brasileira desde o final da era colonial e no decorrer da monarquia privilegiaram os debates em torno da independência do Brasil, da escolha do sistema e regime de governo, das questões abolicionista, religiosa, militar e republicana, acrescentando, ainda, a urgência em industrializar o país. 

 

C.I: Segundo sua pesquisa, o que a mídia brasileira defende como democracia? Como a defesa dessa visão para os interlocutores contribui, de fato, para “o fortalecimento das instituições democráticas do País”, como consta no manual da Veja?

 

Holdorf: Segundo a mídia brasileira – leia-se Veja, Folha e Estadão -, a democracia se centraliza exclusivamente na existência de um processo de renovação política periódica. Em suma, havendo eleições, o país pode ser chamado de “democrático”. Sob esse estranho prisma, então podemos considerar Cuba, Venezuela e até a Síria como nações democráticas. Veja defende o discurso do fortalecimento das instituições focando seus interesses e relacionamentos políticos, econômicos e ideológicos.

 

C.I: Portugal e Espanha dividem espaço na Península Ibérica, mas apesar da proximidade territorial, ambos foram grandes potências rivais. Como a inimizade entre os dois países afetou a relação midiática conturbada entre o Brasil (colônia portuguesa) e as demais nações colonizadas pelos espanhóis?

 

Holdorf: A rivalidade na Península Ibérica não atingiu apenas a mídia. As disputas centenárias entre Portugal e Espanha causaram fraturas em todas os extratos institucionais, públicos ou privados. Por serem vizinhos, tornaram-se concorrentes no cenário da exploração dos continentes. No caso da América do Sul, as disputas – sangrentas em vários momentos – se desenvolveram principalmente nas regiões fronteiriças do Sul, junto ao Uruguai, Argentina e Paraguai. Enquanto única monarquia no subcontinente, o Brasil despertava a desconfiança em decorrência das ligações da casa imperial com as principais famílias da nobreza europeia. Se o Brasil não desse certo, havia o medo do retrocesso. Ou seja, a volta à condição de colônia, fato repudiado pelas nações hispânicas. Os antagonismos entre o mundo lusitano-brasileiro e o espaço hispânico sedimentaram o caminho para o enraizamento das diferenças não apenas no campo político, mas também na economia e na cultura. E quem abasteceu a sociedade certamente foi a mídia.

 

C.I: Como a figura do presidente pode representar a democracia de um país?

 

Holdorf: O posicionamento ideológico e o comprometimento do líder com os eleitores marcam o destino da democracia. Chefe de estado autoritário e opositor da constante renovação no poder revela tendências nada democráticas. Além disso, ele deve reconhecer as demandas populares – excluídas ou ignoradas por outros governantes -, olhar e escutar as minorias, permitindo a erição de uma sociedade com múltiplos pensamentos e mesmo contraditórios, respeitando a diversidade de discursos.

 

C.I: Em sua tese, o senhor define os conceitos de “Outro” e “Mesmo”, separados por uma “linha fronteiriça”. Como esses conceitos se aplicam à maneira com que a mídia trata os presidentes latino-americanos?

 

Holdorf: O Outro-presidente é aquele tratado pela mídia sob o prisma da diferença. O Outro, ora é tratado como inimigo, ora como adversário. O Mesmo é o ambiente com o qual a mídia se identifica. Desse modo, o inimigo deverá ser eliminado e o adversário tolerado, cujas diferenças se respeitam. O Outro-amigo é aquele do qual a mídia se aproxima. O chavismo e o kirchnerismo são tratados como inimigos, cujas características oferecem temor ao cenário brasileiro. Portanto, figuras a serem julgadas e sentenciadas à pena capital pela mídia conservadora brasileira, que contemplam nos governantes chilenos atributos com polaridade positiva. No contexto das relações mídia-América do Sul, eu diria que as tendências antagônicas ao idealizado chegam e avançam fronteira adentro, fazendo com que a figura do Outro-presidente seja construída sob a égide do medo. Trata-se do antidemocrático ameaçando o lado de cá. O avanço do discurso da mídia como modelo de quem se encontra do lado de cá, necessita de um retrato do lado de lá para justificar suas ações. O conjunto de ações, rotinas ou fazeres jornalísticos e suas consequências se incorporam ao pacote daquilo que eu chamo de “engenharia da notícia”. Isto é, o modo pelo qual a mídia constrói, inventa, idealiza, cria, nutre e convoca seus públicos, conduz a sociedade contemporânea, ou pós-moderna, a questionar seu papel, expondo ao risco de deslegitimar suas intervenções, inclusive causando a ruína da democracia.

 

C.I: Atualmente, temos um cenário no Brasil em que muitas pessoas desacreditam a política. Até que ponto deve ir a crítica da mídia à política?

 

Holdorf: Quando a mídia prioriza seus interesses em detrimento das demandas dos públicos que formam a nação, pavimenta-se o caminho do discurso unilateral, hegemônico. Ao criticar qualquer tentativa de ações contrárias à compreensão que a mídia tem de democracia, deixa-se saliente a arrogância midiática em afirmar a propriedade de um saber, e esse saber como superior ao saber do Outro. Portanto, melhor, perfeito, e por isso deve ser considerado o caminho mais racional a ser seguido pelos públicos consumidores dos jornais e revistas. Desse modo, corre-se o risco de deslegitimar a democracia ao rejeitar as articulações entre os diversos discursos presentes.

 

C.I: De maneira contraditória, ao rechaçar o diferente, em vez de promover a democracia, a mídia adota uma postura autoritária. Qual deveria ser a postura adotada, então?

 

Holdorf: A mídia brasileira busca ter características partidárias. Diante do vazio deixado no ponto nodal, a mídia assumiu a condição política de direita, pretendendo governar por meio de discursos conservadores. Qualquer um que discorde de seus fazeres não terá permissão de ameaçar o lugar preenchido pelo discurso midiático hegemônico. Não estou afirmando que a mídia não deva adotar uma postura crítica ao autoritarismo. O problema da mídia sobe à superfície diante das contradições entre discurso e princípios. Para tanto, é preciso não atender aos interesses que se encontram acima das necessidades sociais; atuar com transparência; não se tornar um balcão de negócios ou apadrinhamentos e conchavos políticos; e não se conectar a grupos estranhos aos fazeres jornalísticos. A mais importante missão da mídia deve ser alicerçar a democracia, construindo cenários nos quais os públicos tenham condições de formar opinião. A mídia precisa urgentemente recuperar a credibilidade como baluarte das liberdades coletivas e individuais.

 

    
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