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Os irmãos de José são latinos

 

Thamires Mattos

 

Não sei se você já leu a Bíblia. Eu, já. Lá é relatada uma história peculiar: um homem, chamado Jacó, tinha 12 filhos. De todos eles, apenas dois eram de Raquel - a mulher que ele amava. Seus nomes? José e Benjamin. Entretanto, José era o favorito entre os 12 - ganhava as melhores roupas, recebia mais atenção e amor. O fim da ópera não caberia neste texto.

 

Se os irmãos de José não recebiam a atenção do pai, o que dizer da América Latina, que é marginalizada pela grande maioria dos veículos de comunicação? A comparação se mostra válida. Pesquise a tag "América Latina" no portal de notícias do Estadão e grave o número de resultados. Depois, faça a mesma coisa com a tag "EUA". Dividindo o número de notícias direcionadas aos Estados Unidos pelo número das latinas, o resultado obitido é que para cada notícia sobre a América Latina existem quase cinco notícias que referenciam aos Estados Unidos da América. Nossos vizinhos no mapa são deixados de escanteio.

 

A culpa é dele!

 

Mesmo sem o espaço necessário, a América Latina tem seu lugar no jornal O Estado de S. Paulo. A editoria que mais contêm notícias é a de economia. Ela apresenta matérias intrigantes. Um exemplo é o que foi noticiado no dia 15 de outubro de 2014. A manchete estampava: "Um terço da queda na produção de carros no Brasil se deve à crise argentina", culpando nossos principais rivais no futebol.  O texto continuava em tom de reclamação. "Cerca de 80% dos carros exportados tem a Argentina como destino. Com a crise no maior cliente, o Brasil corre o risco de se tornar ainda mais irrelevante no comércio internacional, apesar de ser o sétimo maior produtor mundial de veículos". Como o Brasil, sétimo maior produtor mundial de veículos, pode se tornar "ainda mais irrelevante"? As controvérsias explícitas nesta frase são uma tentativa de diminuir a confiança latino-americana em seu próprio mercado. O discurso também é tendencioso, jogando toda a culpa pela diminuição de lucros da indústria automobilística brasileira na crise argentina. É, realmente, muito mais fácil jogar a culpa na crise financeira de outro país ao invés de olhar para nosso umbigo.

 

Dias antes, outra matéria também visava estraçalhar a confiança latina: "Banco Mundial faz alerta para a América Latina". O fato foi publicado no dia 8 de outubro. Até aí, tudo bem. Mas logo no lead, o veículo declarava: " Os países da América Latina devem resistir ao caminho 'fácil' da expansão dos gastos e endividamento para enfrentar um cenário de desaceleração e adotar a receita do 'sangue, suor e lágrimas' do ajuste fiscal, com o objetivo de abrir espaço para redução da taxa de juros". Verdade seja dita: o ajuste fiscal é um desafio. Porém, o Estadão o mostra como fora do alcance dos "preguiçosos" países latino-americanos.

 

Não-amados

 

O país latino-americano com mais destaque no jornal  é a Venezuela. Temas principais? Diminuição do preço do barril de petróleo, governo esquerdista e censura. "Recessão ronda o país enquanto números oficiais ficam ocultos"é o título da matéria de primeiro de outubro. "Apesar de o governo não ter publicado números sobre a atividade econômica desde o começo do ano, analistas e empresários garantem que a Venezuela está em recessão", clama o lead. A reportagem segue contrapondo Nicolás Maduro (presidente da Venezuela) com a sensação de instabilidade percebida nas ruas do país. Trabalho interessante, porém traduzido de uma agência de notícias norte-americana: Reuters.

 

O Estado de S. Paulo não parece interessado em mandar repórteres fixos aos países latino-americanos. A cultura da conformidade e o medo do que está geograficamente próximo parecem estar constantemente com o jornal. Para eles, os países da América Latina continuarão sendo como os filhos que Jacó não amava tanto assim - só um pouco de atenção já é suficiente. 

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