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Narciso sem inocência

 

Em um mundo cada vez mais focado no próprio reflexo e imagem a capacidade das conexões humanas é esquecida e anulada 

 

Kelson Brecht

 

Quando olhamos para as pessoas ao nosso redor, o automático e necessário para a progressão saudável da sociedade é a ocorrência de algum nível de empatia pela figura do outro. Esta vem associada com os mais diversos sentimentos, caracterizados e definidos unicamente pelo dono do olhar observador. A empatia funciona – ou deveria funcionar – independente da aparência do próximo.

 

Em nossa visão de mundo, saúde e beleza caminham juntas. Na verdade, sempre caminharam. Cultuar o corpo e toda sua capacidade de proporção fez e ainda faz parte de diversas culturas. Avistar uma bela forma física é o mesmo que diagnosticá-la como pertencente a um ser invulnerável. E não apenas fisicamente, mas socialmente. Pois, de um ser fisicamente saudável, a figura bela passa a receber crédito por aquilo que adquiriu sem qualquer suor, através da genética. Ou, com muito suor, em algumas horas gastas num esporte preferido.

 

A saúde e o culto ao potencial do corpo humano são, então, deixados de lado para o louvor, a vaidade e a superficialidade. “Beleza abre portas”, falam convictos quando mentem. “Beleza abre portas para o sexo, dinheiro, sucesso, saúde, amor... Sim, nesta ordem, por favor”. Contudo a saúde vem inclusa no pacote apenas como convenção. Como chamariz para atingir outros meios bem menos nobres e um tanto levianos.

 

A sociedade passa a utilizar a propaganda do “ideal da beleza” para criar um modelo a ser seguido. Como em uma verdadeira indústria ou fábrica, um padrão começa a ser moldado e aquilo que não se adequa merece ser excluído e jogado fora. É um tanto covarde atrair os interessados em se adequarem quando se usa o pretexto da saúde.

 

A covardia começa quando se tornar extremamente difícil distinguir aquilo que de fato é saudável mental e fisicamente. Aquilo que não se pode comprar. A covardia se estende também quando a fábrica imprime a necessidade de ser belo sem jamais finalizar o processo, deixando a continuidade da busca nas mãos do produto desamparado que, em vão e compulsivamente, irá passar a vida inteira tentando finalizar uma fabricação antes imposta e prometida pelo controle de qualidade.

 

E, para a grande indústria ter efeito sobre os produtos, a mensagem da beleza ideal precisa ser anunciada em forma de propaganda. E, na continuidade deste padrão, a mídia torna-se a aliada perfeita como difusora da concepção do belo. Entre os muitos veículos capazes de enfeitar a visão de saúde com o pretexto de avançar com os moldes preestabelecidos, encontra-se a revista Men’s Health.

 

Lançada em 1987 por Mark Bricklin nos Estados Unidos, e difundida por 47 países, a revista Men’s Health passou a ser publicada no Brasil a partir de 2006 através de uma iniciativa da editora Abril com parceria da editora alemã Gruner + Jahr. A revista tem como maior objetivo entregar ao homem moderno um estilo de vida. Temas como fitness, moda, nutrição, sexualidade, relacionamentos e finanças são abordados conformando-se com um padrão a ser seguido pelo leitor. O interessado irá automaticamente enxergar os temas e assimilá-los ao cotidiano. Desta forma, aquilo externo e unicamente expressado dentro de uma revista torna-se interno, em um manual de sobrevivência e construção física.

 

Em títulos como Otimize a malhação, Duda, o bicampeão mundial indoor do salto em distância e Alivie a pressão, a abordagem atinge a saúde e o esporte, dando dicas e/ou sugestões para o melhoramento da qualidade de vida esportiva. O foco no superficial começa quando surgem os títulos Quer ficar ainda mais bonito?, Tudo que você queria saber sobre sexo, mas tinha receito de perguntar até para o Google, 20 táticas para construir um corpo nota 10, Sexo aceso 24 horas ou o inadvertidamente – ou intencionalmente – ambíguo Cristiano Ronaldo é o melhor jogador de futebol do mundo, mas será que está satisfeito com seu corpo?, onde a reportagem fala sobre o sufoco físico e impasses enfrentados pelo jogador. A ideia geral passada pela revista é a de um estilo de vida regado a mulheres e sexo, dinheiro e sucesso. Mas para tal, é necessário atingir a beleza inalcançável através da saúde. Onde, no caso, saúde é apenas um meio para o final estilo de vida bombardeado pelo veículo.

 

E mesmo sendo indicada para o público masculino, a revista acaba também atingindo o feminino. A visão do homem perfeito torna-se um estereótipo seguido por tantos que quando alguém desvia do padrão este se torna indigno da apreciação do sexo oposto. Assim, o efeito imediato e mais arrebatador é a vontade de receber um selo do controle de qualidade da indústria e dos indivíduos já participantes desta. Acabando por desumanizar o ser e exterminar a empatia inerente do recém-formado produto, agora deixada de lado para todos serem encarados como um objeto em processo de maturação e perfeição unicamente física.

 

A propagação do “eu” e do ego acaba imprimindo na própria sociedade um narcisismo pleno. Onde o intenso e ininterrupto olhar para o reflexo na superfície do lago desvanece pouco a pouco o nosso grande corpo sem darmos conta de que logo a contemplação terá sido inútil. A diferença é que Narciso, ao se deparar com o belo reflexo, foi ingênuo e incapaz de identificar quem estava de fato observando. 

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