Construtores do Medo
Emanoel Junior
Graduada em Medicina pela Universidade Federal da Bahia, Maria Ligia Rangel é especialista em Tisiopneumologia Sanitária pela USP, com mestrado em Saúde Comunitária e doutorado em Saúde Pública pela UFBA. Desenvolve atividades de ensino, pesquisa e extensão, com ênfase na área de Educação e Comunicação em Saúde.
Canal da Imprensa: Doutora, a senhora desenvolveu no artigo “Epidemia e Mídia: sentidos construídosem narrativas jornalísticas” uma importante conexão entre dois universos antes distantes. Onde nasce essa relação entre comunicação e saúde?
Maria Ligia Rangel: A interface comunicação em saúde, enquanto área de estudos e pesquisas, tem se desenvolvido no Brasil a partida da década de 90 com um pensamento crítico acerca dos modos como a saúde pensa a comunicação e vice-versa, capitaneado pela GT de Comunicação da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva). Sobre isso ver o texto de Fausto Neto ...
Embora o setor saúde desde o início do século XX tem uma interface com a comunicação.
C.I: Nesse mesmo artigo, vemos a análise sobre um caso específico (epidemia de leucopenia por exposição ocupacional ao benzeno em Camaçari-BA) em que a mídia construiu sentimentos na população. Em casos atuais como a Gripe Suína, a Gripe Aviária e, mais recentemente, o Ebola, a mídia repete esse processo de construção do medo?
Maria Ligia: A mídia tende a favorecer uma pedagogia do medo, por buscar chamar a atenção do público de forma sensacionalista. Sabemos que o seu papel de informar fica subordinado a interesses comerciais, quando a notícia é tornada uma mercadoria e, a partir daí o que importa é vender a notícia. De outro lado, de modo geral as pessoas são atraídas por dramas e tragédias e tendem a buscar informações como formas de se protegerem das mesmas. Assim, nos caso citados pode-se observar que há uma repetição dessa conduta da mídia, que tende a alarmar as pessoas.
C.I: Conhecemos casos históricos em que doenças saíram do controle e dizimaram milhões, como a Peste Negra, em 1347. Com esse medo natural, como a população deve lidar com as narrativas criadas pela imprensa sobre epidemias? As pessoas são educadas a “filtrar” o necessário ou entram em “neurose”?
Maria Ligia: Certamente as pessoas, de modo geral não são educadas a “filtrar” as informações que circulam na mídia e podem entrar em “neurose”, como você diz, e podem também pressionar governos a tomarem medidas às vezes descabidas. Por exemplo, no caso da Febre Amarela em 2008, que gerou manchetes escandalosas na TV e nos jornais.Até 14 de março, houve 65 notificações de casos suspeitos de febre amarela silvestre, 38 confirmados e 20 óbitos — todos originados em áreas rurais de Goiás, Mato Grosso do Sul, Distrito Federal, Mato Grosso e Paraná, de risco conhecido para pessoas não-vacinadas (Radis 66). A população entrou em pânico e lotou os postos de saúde: em poucos dias foram aplicadas 7,3 milhões de doses de vacina.Mas nada houve de diferente em 2007 e 2008 em relação aos outros anos, pois a febre amarela é uma doença sazonal, que aparece a cada cinco ou sete anos. Houve casos em 2001 e 2002, portanto já era previsto em 2008. O governo já estava preparado e continuou seguindo as estratégias de vacinação. Mas se a doença ganhou as páginas dos jornais foi porque casos surgiram especialmente no Distrito Federal, capital do país.Assim, o pânico causado pela mídia comprometeu o estoque de vacinas. E é importante considerar que a vacina é um instrumento muito importante, da mesma forma que pode provocar vários efeitos colaterais.Houve pressão de umamulher grávida de três meses que queria de qualquer forma ser vacinada, quando a vacina é contra-indicada para grávidas. Este é apenas um exemplo simples de como a atuação da mídia produz efeitos inesperados, mas outros efeitos mais graves podem ocorrer.
C.I: Por outro lado, como a mídia tem se posicionado e como ela deve se posicionar em situações que envolvem suscitam sentimentos na população?
Maria Ligia: A mídia deve ser consequente, apurando melhor as informações que divulga e analisando possíveis efeitos das mensagens. Falta uma formação especializada dos profissionais de jornalismo para cobrir uma área tão complexa como é a da saúde. É preciso que compreendam certos procedimentos que podem ser vistos como recusas, mas que podem ser cuidados, como no caso da Sra.grávida. É fundamental o papel de crítico das condições de saúde e do acesso a serviços de saúde que mídia exerce, mas é preciso saber o que está fazendo, ou seja, quais as consequencias.
C.I: Agora, como médica, qual a real proporção do Ebola? Ele pode sair da África? Se sim, como os países devem se prevenir da doença?
Maria Ligia: Não saberia avaliar a real proporção do Ebola, questão à qual a OMS está se dedicando. Contudo, é importante ressaltar que vivemos hoje em um mundo globalizado, com intensa circulação de pessoas e produtos que tornam a questão de saúde ainda mais complexa e demandam medidas de controle que podem envolver diversos países. O Brasil hoje conta com um Sistema Nacional de Vigilância Sanitária que tem competência para agir em portos aeroportos e fronteiras, controlando a entrada de doenças no território brasileiro.
C.I: Muito se tem dito na mídia que o baixo nível de desenvolvimento humano da África influencia muito na proliferação da doença. A senhora acredita que a imprensa também constrói um sentimento de repulsa à África?
Maria Ligia: A mídia pode contribuir para acentuar a discriminação da África, na medida em que enfatize a situação da doença, em detrimento de outras informações sobre a mesma.
C.I: Como sugere sua linha de pesquisa, devemos contribuir para que as narrativas jornalísticas se tornem mais “sensíveis”. Como se daria essa contribuição?
Maria Ligia: Considero importante que o jornalismo se qualifique melhor para cobrir os temas de saúde, para se tornar mais sensível e eficiente. A área de saúde é uma área complexa, permeada por intenso jogo de interesses políticos, do uso de inúmeras tecnologias e por valores e crençasmuito diversas, e na qual circula o conhecimento técnico-científico em meio a outros saberes. O jornalista precisa ampliar seu conhecimento sobre as várias referências do conhecimento sobre o tema que cobre, para deslocar-se de um lugar de informante pouco qualificado, que lida sobretudo com o conhecimento do senso comum sobre os temas.
