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O vírus do medo

 

Aline Lüdtke

 

 

Um espirro, uma tosse e, de repente, a sociedade local corre risco de extinção. E tudo por causa de um animal vindo da África ou da Ásia que hospedou um novo vírus mortal, desconhecido e, por consequência, sem cura. Parece que essa breve descrição pode trazer à lembrança alguns vários filmes, não? E é recorrente a ideia de que a raça humana corre risco por causa de alguma arma biológica. Seria essa reincidência mero acaso?

 

Para tornar a análise mais objetiva, tomemos os filmes Epidemia, de 1995, e um mais recente, de 2011, Contágio com objetos de estudo. No primeiro, um vírus originado na África em 1967 volta a assolar o continente trinta anos depois. Em ambas as situações, o exército norte-americano tomou as rédeas e não hesitou em dizimar não só o vírus – que matava em três dias – mas toda a população local. O problema foi quando, por meio de um macaco exportado, a doença chega em território estadunidense, causando um surto numa pequena cidade do interior. Mais uma vez, o exército se encarrega de cuidar do caso, que, por pouco, não termina como nas ocorrências anteriores.

 

 Na segunda trama, a transmissão ocorre de forma global, quando um chef de um cassino em Hong Kong entra em contato com um porco contaminado. Logo em seguida, ele é cumprimentado pela executiva norte-americana, que se encarrega de disseminar o vírus ao se relacionar com pessoas de várias nacionalidades pelo local. Após sua morte, outros casos são anunciados ao redor do mundo, colocando as autoridades em estado de alerta. No filme, a reação dos cidadãos ganha destaque. Este, amedrontados e desinformados, agem como que por instinto para sobreviver – aglomerando-se em farmácias, saqueando bancos e estabelecimentos e invadindo casas. Ao mesmo tempo em que o governo estadunidense tenta manter o controle da situação enquanto órgãos de saúde buscam incessantemente uma solução, um jornalista se aproveita da situação para espalhar boatos pela internet que acabam fazendo sua fama. A luta pela sobrevivência dos cidadãos somada à luta contra o vírus para encontrar a cura e à luta para manter a sociedade sob controle, caminham juntas para seus respectivos clímaces até culminarem na criação da vacina que marca o início da “paz”, junto com a prisão do jornalista e o clássico “final feliz”.

 

Inevitavelmente, há elementos da ficção que se relacionam com a realidade, já que a própria intenção de filmes assim (principalmente o mais recente dos dois citados) é a de verossimilhança. O curioso é que ambos os filmes foram lançados em épocas imediatamente posteriores a grandes crises como as retratadas nas filmagens. Epidemia foi lançado logo após o surto de Ebola na própria África em 1994 e 1995. Contágio, por sua vez, veio a público dois anos depois do surto da gripe H1N1, que assustou o mundo em 2009. De alguma forma, os longas-metragens parecem querer ensinar algo.

 

Desde o começo de Epidemia, é impossível não perceber a notável participação do exército norte-americano tomando sobre si a responsabilidade de solucionar a epidemia que tomou lugar em outro continente. Embora o próprio exército estadunidense, que atuava no local, tivesse sido atingido e, considerando que num contexto global, as nações mais privilegiadas podem – por que não? – auxiliar as mais desfavorecidas, a autonomia com que a instituição cuida do caso parece querer mostrar “quem manda aqui”. Apesar do conflito entre membros do próprio exército sobre como resolver a situação, tudo acaba bem apenas pela intervenção e atuação do próprio exército. Já em Contágio, o Departamento de Segurança Nacional dos Estados Unidos continua à frente do caso, mas associado, é claro, à Organização Mundial da Saúde, e envolvendo o Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA (CDC), a Cruz Vermelha Americana e a Agência Federal de Gestão de Emergências (FEMA).

 

“Nada se espalha como o medo”, anuncia a divulgação do filme Contágio. É, a Idade Média que o diga. Afinal de contas, nada melhor que se utilizar dessa estratégia para garantir que certos comportamentos sejam seguidos, e, assim, manter-se no controle. Nesse momento surge a questão: seriam os filmes – uma das mídias mais acessíveis e populares – seriam apenas entretenimento, ou também uma forma de manutenção do poder? Ambos os filmes exemplificados neste artigo mostram como a população é indefesa e frágil ante agentes invisíveis como um vírus, e como são incapazes de lidar com a situação. Em resposta a isso, como num tom de ameaça maternal, apresentam em quem se deve “confiar” e, obviamente, de quem se deve duvidar. Essa confiança, no entanto, baseia-se numa fé cega, já que pouco se informa à população que é tratada como a “massa incapaz”. Quando alguém toma a iniciativa de esclarecer os fatos e divulgá-los abertamente, no entanto, é considerado oportunista e corrupto. 

  
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