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A ‘anti-revolução’ do coelho

 

Considerada “revolucionária” por boa parte da mídia, Playboy cresceu sob os alicerces da sociedade machista da primeira metade do século 20. Na prática, para a revista, mulher continua sendo um objeto.

 

Guilherme Cavalcante

 

Há alguns anos, lembro-me de estar em casa procurando algo de bom para assistir na televisão – uma situação cada vez mais difícil mesmo para quem tem assinatura de TV fechada. Não recordo ao certo o número do canal, mas o nome nunca esqueci: “E! Entertainment Television”. Na tela, um reality show sem disputa. Dezenas de mulheres confinadas em uma mansão com trajes – sensuais – vermelhos de coelho. As câmeras mostravam várias delas se arrumando e fazendo fila perto da porta de entrada de um imenso espaço dentro da casa. Se não fossem as roupas – ou melhor, a falta delas – poderia se dizer que se tratava de fãs adolescentes enlouquecidas à espera de um autógrafo de alguma boyband inglesa.

 

Dentro do espaço, quase totalmente escuro, havia um imenso bar repleto de bebidas caríssimas, com um painel luminoso vermelho atrás, e no centro um imenso carpete vermelho com cadeiras espalhadas ao redor. Após o OK dos seguranças, as “coelhinhas” – como eram caracterizadas as jovens – sentam-se animadas nas poltronas ansiosas pela chegada dele. Mas quem é ele? O fundo escuro à frente das garotas trata de responder após um show de luzes com um toque – novidade! – erótico.

 

Mais alguns efeitos especiais dignos de grandes produções hollywoodianas, e aparece um senhor que aparentava ter 80 anos (fez 88 há algumas semanas) enrolado em um pijama vermelho com bordas brancas que começa a falar sobre sua história e conta seu “legado” para a sociedade – detalhando sua batalha contra um pensamento social conservador. Após essa apresentação, digna de um herói de guerra, as luzes se voltam para um espaço logo abaixo da tela e Hugh Hefner, o tal senhor que é – nada mais, nada menos – que criador do império da Playboy, aparece triunfalmente para delírio das “coelhinhas”.

 

A figura do velhinho que introduziu a revolução sexual na sociedade norte-americana – e, consequentemente, no mundo inteiro – é a que você vai encontrar na mídia. Pouco tempo depois dessa curta cena que presenciei na série “A Mansão Playboy” (The Girls Next Door), o jornal The New York Times dedicou uma página inteira para exaltar os feitos de Hefner.

 

A verdade nessa história toda é que, de revolucionária, a Playboy nunca teve nada. O primeiro artigo publicado na revista, em 1953, foi uma amostra dos ideais machistas sob os quais a publicação está fincada. Entitulado “Miss Interesseira”, sob autoria do misógino Philip Wylie, o texto contém a chocante frase: “Quando um casamento moderno termina, não importa de quem é a culpa – é sempre o homem que paga e paga e paga.” Melhor nem citar outros exemplos daquela edição que colocam a mulher como egoísta, gananciosa, dinheirista e burra. Aonde está a revolução na reprodução de ideias machistas comuns na sociedade da época?

 

Hefner jamais escondeu a orientação de sua revista, a ponto de declarar – há quase 40 anos – que era hora de combater o feminismo. Dá para ver que a estratégia não mudou após a ridícula publicação de um anúncio de uma página na coirmã Veja, no fim do ano passado, exaltando o machismo com frases do nível de “Sim, adoramos ver uma bela bunda passar”, “Como casamento dá trabalho, deveríamos receber um mês de férias por ano” e “Podem protestar quanto quiserem. Se fizerem isso nuas, melhor ainda”.

 

Na Playboy, a mulher é rebaixada a um objeto. Através de suas páginas, textos e artigos, ela não apenas atribui ao homem o papel de controle sobre o corpo feminino como defende com dentes e unhas essa dominação. O destaque às modelos nuas serve apenas para referendar a incapacidade intelectual feminina, afinal – para os leitores/editores da Playboy – o que há de mais importante do que o corpo de uma mulher? Deve ser por isso que a empresa segue ruindo. Incapaz de entender que a posição do sexo feminino na sociedade atual não é a mesma de 1920 resta saber quem cai primeiro: a empresa ou seu dono?

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