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Imprensa, Gigantes e o não-jornalismo

 

Cercada de mística, a norte-irlandesa “Giant’s Causeway” causa discórdia entre religiões e põe a mídia no fogo-cruzado

 

Guilherme Cavalcante (correspondente em Dublin/Irlanda)

 

Leprechauns, alienígenas, gigantes, gnomos, duendes e divindades já passaram pela lista de criadores daquele que é um dos maiores mistérios da humanidade. A “Giant’s Causeway” (em português, Calçada dos gigantes) atrai cerca de 500 mil turistas todos os anos para a pequena vila de Bushmills – pertinho de Belfast, capital da Irlanda do Norte. O motivo? Bom, basta tentar entender como 40 mil pedaços gigantescos de basalto foram parar enfileiradinhos, no estilo de uma calçada mesmo, à beira do mar. A verdade é que a confusão sobre a origem desse lugar, considerado pela Unesco como Patrimônio da Humanidade, já vem de muito tempo. E com uma grande ajuda da mídia britânica e irlandesa.

 

Tudo começou na antiga civilização celta. De acordo com os povos antigos que ali habitavam, que incluíam aí os famosos vikings, um gigante irlandês chamado Fionn McCool construiu a calçada para enfrentar – após um desafio – um brutamontes d’além-mar, o nada pequeno escocês Benandonner. Cada lado conta uma história diferente dessa lenda, mas a questão é que a partir daí o mito começou.

 

No princípio a história era transmitida oralmente, e durante cada parada no caminho, transformada, enfeitada – enfim, outra. Era um tal de põe leprechaun (aquela “fada” em um corpo de homem velho pequeno) aqui, duende aparecendo em outro trecho. Com a invenção da imprensa e o avanço da mídia impressa pelo Reino Unido, começando por Londres e áreas do Norte da Inglaterra, as lendas sobre a calçada ganharam ainda maior proporção – e divergências. Nunca é fácil para um veículo de comunicação lidar com lendas populares, porém um acontecimento recente deu um exemplo de como não lidar com isso. Nem mesmo os respeitados veículos de comunicação britânicos escaparam.

 

Criacionismo e mídia irlandesa

 

Em 2012, a organização de conservação de elementos históricos The National Trust, em conjunto com o governo norte-irlandês, decidiu criar um centro de visitação no local. O objetivo era facilitar o acesso de turistas e fazer conhecer a região. O projeto em si já levantara algumas sobrancelhas entre os moradores do condado, devido à possibilidade de cobrança para a visita – o que acabou não acontecendo, mas o que se seguiu foi um cerco midiático e popular contra algo quase insignificante, Cobrança? Possibilidade de desembolso de dinheiro por parte dos cidadãos? Isso não foi o que apareceu na mídia.

 

O grupo The National Trust decidiu incluir, em seu guia audiovisual entregue a cada um dos visitantes, a versão cristã-criacionista sobre a origem da “Giant’s Causeway” – como apenas uma das muitas versões espalhadas sobre o surgimento das calçadas. Pois bem, o fato gerou revolta por parte de um grupo de cientistas e alcançou um status estrondoso graças a repercussão ofertada ao caso pelo Belfast Telegraph, Irish Times e veículos como BBC e The Guardian.

 

Em um período de duas semanas, várias reportagens foram publicadas pela imprensa britânica dando vozes aos cientistas que acusavam os criacionistas de “loucos”, “fundamentalistas” e “pessoas com nada para fazer”. Nenhum espaço chegou a ser dado para os criacionistas, que acreditam no Giant’s Causeway como prova de que o planeta Terra teria apenas seis mil anos de vida, explicarem-se ou defenderem a inclusão do trecho de apenas 20 segundos no roteiro audiovisual. A agitação da mídia em torno de algo tão pequeno quase custou a demissão da diretoria do instituto e a reputação dos criacionistas, membros da Northern Ireland Caleb Foundation. Detalhe: ninguém, até hoje, jamais conseguiu provar de maneira definitiva – ou até mesmo parcial – a data correta do surgimento do conjunto das colunas de basalto.

 

Quando a mídia séria opta por tentar bancar qualquer coisa que não seja o jornalismo defensor do direito público e da sociedade, os resultados tendem a ser não muito bons. Tomar partido de teorias não faz parte do jornalismo comprometido com a sociedade. Ou pelo menos, não deveria fazer. Uma pisada na bola feia da tão exemplar imprensa britânica.

    
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