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Uma escolha para os lúcidos

 

Kelson Brecht

 

Em uma democracia, o óbvio e ideal é que a população insatisfeita possa ter sua voz ouvida. Quando ignorada, o descontentamento leva as massas a ações -muitas vezes- precipitadas e violentas, com o intuito de fazer com que seus líderes sintam a desordem e o caos que apenas um povo infeliz pode trazer. No entanto, se esta mesma multidão olhasse um pouco mais perto para o recurso que dá sentido ao sistema em que vivem – a escolha –, poderiam mostrar, através desta, o quanto desejam, da forma mais literal,mudar ou livrar-se do governo que os aflige, ignora, ou simplesmente deixou de satisfazê-los.

 

Em 2004, o escritor português José Saramago abordou a natureza da democracia em sua obra Ensaio Sobre a Lucidez. No romance, a população de um país fictício e anônimo decide votar em branco durante eleições parlamentares. Visto como o mais grave ato de protesto, o governo passa a investigar as origens da abstenção popular. Durante a investigação, decidem punir o povo com um Estado de Sítio, onde a assistência do governo é inexistente e o abuso do poder prevalece. A lógica: o caos associado ao patamar mais alto da insatisfação faria o povo enxergar os “erros de seus caminhos” e o arrependimento os traria às asas acolhedoras daqueles que, em primeiro lugar, os violentou. As consequências vieram e, no final, o equilíbrio entre Povo e Governo – o sentido primário da Democracia – despencou, pois o Poder pendeu apenas para um lado.

 

A temática de cegueira e lucidez, abordada primeiramente no romance Ensaio Sobre a Cegueira, em 1995, retorna em forma de continuação. Enquanto a população deste mesmo país anônimo sofria de uma epidemia denominada “Cegueira Branca” na obra de 1995, e através desta despertava para a realidade a sua volta, em Ensaio Sobre a Lucidez, a cegueira parece dominar as cadeiras do parlamento. Os cidadãos, neste momento, mostram-se lúcidos, exercendo a sua função e utilizando o melhor recurso que possuíam para fazer seus governantes enxergarem a insatisfação: o voto.

 

A abordagem de Ensaio Sobre a Lucidez ilustra a capital do país e seus habitantes sem detalhes descritivos em ambientes ou nomes (apesar de reconhecermos alguns personagens de Ensaio Sobre a Cegueira, como o médico e a mulher deste), fazendo do local um símbolo que pode se adequar a qualquer nação que passe por problemas similares. Além disso, a temática não é apenas atual e relevante para nossa sociedade. Ela se aplica perfeitamente a realidade. Afinal, em nosso país enfrentamos também épocas de eleições. E se digo “enfrentamos” é porque não passamos longe dos problemas que encaram os habitantes do país no romance de Saramago. Prova disto foram os protestos que se alastraram pelo Brasil no ano passado. A demanda por mudanças, a decepção com quem nos governa – ou pretende nos governar –, os gritos proclamando o despertar de um gigante... Tudo ilustrou a insatisfação plena de uma nação. Pois bem, talvez não tenhamos a mesma lucidez de antes. Talvez a natureza de nossa revolta adormeceu novamente e os olhos cerrados nos mantém cegos. Ou quem sabe aqueles que nos governam também precisem despertar.

 

Ensaio Sobre a Lucidez leva adiante o conceito do equilíbrio entre Povo e Governo existente na verdadeira democracia. Um governo descontente tem como consequência um povo insatisfeito. Para os lúcidos habitantes da capital no romance de Saramago, a solução foi mostrar, através dos votos, o branco que um dia os cegou, mas continuava a cegar quem os governava. Em circunstâncias reais, talvez não ousaríamos mostrar todas as cores que nos afligem.

  
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