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Vence na vida quem diz

 

Aline Ludtke

 

E, de repente, acharam-se no direito de calar a minha voz. Nada podia sair da boca de um opositor numa simples conversa informal, que dirá em manifestação. E o ousado a me defender por escrito arriscava a própria vida. Assim, pensavam os que orgulhosamente exibiam suas fardas, não mais contariam com a ameaça da oposição.

 

Ameaça esta, aparentemente muito temida, já que até mesmo se encarregaram de criar um departamento só para me vigiar. E, para garantir, por que não calar outras vozes, que, às vezes, nada tinham a ver comigo? Espera aí, eu disse "calar"? Acho que quis dizer "censurar". De quantos amigos de pena e papel eu tive que me despedir! A quantos outros inimigos eu fui apresentada? Ah, anos difíceis, aqueles! Mas em todos eles, a certeza: “podem me prender, podem me bater, podem até deixar-me sem comer, mas não mudo de opinião”.

 

Foi quando me descobriram de outro jeito. Perceberam que eu não precisava ser tão explícita. Não precisava ser gritada ou estampada em cartazes. Nem impressa. Foi quando eles perceberam que eu podia vir acompanhada de outra voz, uma mais amiga de todos, ouvida até pelos próprios homens fardados. E mais uma vez, fiz novos amigos: cordas de violão, teclas de piano... E ao meu lado, no papel, passaram a figurar umas redondinhas que pelo jeito faziam sucesso. Junto com elas, mandei logo o recado para quem tentava me silenciar: “Pai, afasta de mim esse cálice”!

 

Enquanto redações eram fechadas ou invadidas pela presença incômoda de um censor, gravadoras disseminavam aos quatro ventos o que os jornais não podiam publicar. E assim, eu até viajei Brasil afora! (Afinal de contas, “quem sabe faz a hora, não espera acontecer”). De uma hora pra outra, fui passando de coração a coração, mais rápido do que jamais poderia imaginar. Não estava mais silente, não estava mais a sós. Não obstante, a realidade contra a qual eu protestava continuasse, aparentemente, imutável, invicta, era justamente esse protesto disfarçado que trazia esperança e garra a tantos desses corações.

 

De vez em quando ainda me pegavam, é verdade. Quando notavam certa popularidade, logo temiam que fosse eu. E lá iam os fardados proibir tudo novamente. Mas eu insistia: “é proibido proibir”. E com todo o esforço empreendido, nem naquela época se poderia prever que a minha voz, ecoando de uma mente junto com um violão, continuaria, soando através dos tempos, para outras mentes e junto a outros violões.

 

Foi graças à arte, graças ao espaço que só encontrei na música que tantas mensagens de revolta, de desabafo, tantos pedidos de ajuda, tanta vontade de mudança puderam ser escoados. E como só um meio tão complexo, tão grande e imprevisível poderia conter tantas ambiguidades e polissemias, assim foi que, mesmo baixa, minha voz pôde continuar ecoando.

 

Até que depois de tanto tempo aprendendo a me esconder entre acordes, me esgueirando, ora entre claves de fá, ora entre claves de sol, minha voz ganhou um coro cada vez maior. Finalmente, eu não precisava mais viver entre disfarces. Os anos de anonimato acabaram com a confirmação de uma certeza que eu vivia afirmando: “apesar de você, amanhã há de ser outro dia”. 

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