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Arte pluridimensional

 

Thamires Mattos

 

Comunicação é uma palavra carregada de ambiguações. No âmbito do Jornalismo, a veracidade é fundamental para que as informações sejam passadas corretamente. Nas Artes (que também são tipos de comunicação), nem tudo precisa ser “a verdade nua e crua”. É aí que o debate começa. A verdade objetiva, tão pregada pelo jornalismo, se choca com a subjetividade artística. Quadros barrocos podem beirar a perfeição, mas não se comparam com o “clique” de uma câmera em termos de representação fiel do momento. O filósofo alemão Friedrich Nietzsche refletiu sobre a questão. Sua conclusão foi que “temos a arte para não morrer da verdade”.

 

Porém, como explicar a verdade implícita nas artes? Músicas lançadas no período da ditadura militar brasileira, como "Pra não dizer que não falei das flores" (Geraldo Vandré), “Cálice” (Caetano Veloso), “O Bêbado e a Equilibrista”, (Aldir Blanc e João Bosco), e gravada por Elis Regina, para não citar tantas outras, são exemplos de que a música não é feita apenas de melodias e letras abstratas. Para Eduardo Seincman, livre-docente da Escola de Comunicação e Artes (ECA), que pertence a USP,  “a música, como qualquer outro meio de comunicação, é uma interação entre quem compõe, quem toca e quem ouve”. Para ele, que é doutor em artes, a comunicação através da música é intensa. O ouvinte deve fazer correlações e interpretações que podem ser, até mesmo, ligadas historicamente ao passado. “A presença não é só do receptor e do emissor. Há um contexto histórico para a interpretação, uma bagagem cultural”. Seincman ressalta que o passado, retratado na figura de obras musicais, pode ser nosso presente se aplicado ao momento. Um exemplo é o ato de escutar uma sinfonia de Ludwig Van Beethoven hoje. O receptor não se comunica apenas com o emissor, mas também com o compositor,  já morto. As informações perduram.

 

Para Ally Collaço, bacharel em Cinema e mestre em Educação, "a arte não reside mais só na obra, ou no artista, mas também no público que ressignifica da sua maneira, a leitura que faz do mundo, ou de uma obra". Assim, a arte seria usada para estabelecer um contato "único" com o receptor da mensagem.

 

​"Não, a pintura não está feita para decorar apartamentos. Ela é uma arma de ataque e defesa contra o inimigo." Pablo Picasso - pintor, escultor, ceramista, cenógrafo, poeta e dramaturgo espanhol

 

​A afirmação de Picasso se mostra válida, pois ele a exerceu. O painel “Guernica”, pintado pelo espanhol em 1937, tem grandes dimensões – 3,5 metros de altura por 7,8 metros de largura. É, acima de tudo, uma declaração política contra a Guerra Civil Espanhola e a Alemanha Nazista, que se aproveitou do momento frágil do país para testar novas armas em seu território. No dia 26 de abril de 1937, alianças corruptas e objetivos depravados causaram um bombardeio de aproximadamente duas horas em Guernica, cidade espanhola conhecida na época como bastião dos ideais republicanos. Pablo não paralisou sua imaginação frente a essa tragédia. Ele a utilizou para enfrentar a guerra. O painel “Guernica” atraiu as atenções do mundo para a situação da Espanha.

 

 ​No entanto, esta “arte engajada” pode perder seu valor artístico com o tempo. Segundo o filósofo e cientista político Rubens Tavares, este “engajamento da arte é a sua própria morte, tanto no sentido estético quando político e acaba por se transformar em arte panfletária. Uma coisa é a arte, outra a propaganda. Arte não é propaganda, cujo sentido é nos ‘vender’ um determinado produto ou realidade”, ressalta.

 

"Uma das principais tarefas da arte sempre foi criar um interesse que ainda não conseguiu satisfazer totalmente." Walter Benjamin - filósofo, crítico literário, tradutor, ensaísta e sociólogo alemão

 

Apesar de a arte não possuir o mesmo papel da propaganda, o filósofo e sociólogo Walter Benjamin sabia que obras tinham seu valor para “vender” ideais únicos. O pensamento benjaminiano diz que na era da reprodutibilidade técnica a aura das obras de arte poderia ser perdida. Como exemplo, temos a massificação da figura da Monalisa: o quadro de Leonardo Da Vinci é único, mas Benjamin afirma que a aura é quebrada com a reprodução frenética da imagem. A maioria da população mundial tem condições de adquirir uma cópia da obra, ou, pelo menos, conhece o olhar emblemático da suposta “Gioconda”. Assim, as pinceladas de Da Vinci perdem sua singularidade e real significação.

 

Tavares adverte que a era da reprodutibilidade técnica pode ser positiva, pois faz com que a arte esteja próxima de “nossos olhos”, mas também pode ser muito negativa. Ele atribui uma das razões deste comportamento ao capitalismo. “Ela (a arte) é mais uma mercadoria a ser consumida sem a preocupação de educar nossos sentidos e sentimentos”, ressalta o filósofo.

 

 Criada como crítica política e social, a arte pop surgiu na década de 1950, na Inglaterra, e amadureceu na década de 1960, em Nova York. O famoso quadro de Marilyn Monroe é, provavelmente, o mais conhecido deste movimento. A obra é de Andy Warhol, que procurava fazer críticas ao capitalismo e mostrar, através de suas pinturas, como as celebridades eram vazias e até mesmo impessoais é um exemplo do movimento. Para tal, ele usava a produção mecânica ao invés da manual. Apesar disso, a maioria das pessoas não entende o significado das obras de Warhol. Para Ally Collaço, a partir do momento que a arte pop foi massificada, "evidenciou um público que não compreendia nem a obra abstrata e nem a obra que criticava a abstração e seu respectivo público". Ela também ressalta que "nossa preocupação atual deve ser a de educar este público, possibilitar cada vez mais este acesso e domínio das ferramentas que estão disponíveis".

 

No entanto, o público brasileiro não tem justificativa, perante a lei, para ter pouco contato com a arte. Em 1991 foi promulgada a Lei número 8313, mais conhecida como Lei de Incentivo à Cultura (Rouanet). Todos os cidadãos devem ter o acesso à cultura facilitado pelo próprio Governo Federal. Mesmo assim, a realidade pode ser diferente da lei. "Uma coisa é a lei, outra é a realidade da cultura e como temos acesso a ela", opina Tavares.

 

"O criador da nova composição nas artes é um fora-da-lei até que ele seja um clássico." Gertrude Stein – escritora e poeta americana

 

A frase de Stein expressa muito o pensamento do público que se autodenomina “erudito”. Ainda há uma separação entre as “Belas Artes” e o que é criado pela cultura popular. Eduardo Seincman explica que esses conceitos são do século 18, e, portanto, “completamente desatualizados”. Mesmo assim, o compositor ressalta que nesta época o “popular” já se misturava com o “erudito”, citando como exemplo “A Flauta Mágica” (“Die Zauberflöte” em alemão), uma ópera com melodia e arranjos feitos por Wolfgang Amadeus Mozart e letra de Emanuel Schikaneder. “Uma boa parte das melodias dela são populares para a época”, se tornando uma das óperas com a “maior bibliografia” do mundo, de acordo com Seincman. Ele ainda frisa que temos “coisas geniais na cultura popular e coisas que não são boas na cultura erudita”.

 

O músico dá sua opinião: "estamos entrando em uma nova renascença". O Renascimento foi um movimento cultural, social, político, econômico e religioso que ocorreu na transição da Idade Média para a Idade Moderna, buscando influências na antiguidade clássica. Um de seus maiores expositores foi o italiano Leonardo da Vinci. Polímata, se tornou conhecido por sua arte e descobertas científicas - ambas andavam lado a lado. A semelhança é realmente grande com o momento em que vivemos. Além do tripé "arte-ciência-tecnologia", Ally Collaço salienta que "o acesso ao saber e ao que o 'outro' produz facilitou a disseminação tanto de obras quanto de artistas. A distinção clara entre os conceitos de arte, tecnologia, mídia, público e artista estão cada vez mais difíceis". Seincman destaca que isso é fruto de um "mundo pluridimensional, cheio de camadas" - e é aí que precisamos prestar atenção na genialidade e originalidade da arte, seja ela erudita ou popular.

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