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Sempre Jeca

 

Thamires Mattos

 

Se engana quem acha que a coleção de livros "Sítio do Pica-pau Amarelo" foi a única obra de Monteiro Lobato a ser adaptada para o mundo cinematográfico. Lembramos apenas de Narizinho, Pedrinho, Dona Benta, Visconde de Sabugosa, Emília, Cuca, Tia Nastácia, Quindim. Paramos no tempo. Agora, vamos resgatá-lo um pouco. Urupês, coletânea de crônicas e contos, é considerada a obra-prima de Lobato. O conto homônimo foi uma das "guinadas" de sua carreira. Nele, o personagem Jeca Tatu é apresentado ao Brasil - um caipira preguiçoso, chato, cheio de manias. Aparentemente tolo, sabe fazer suas artimanhas - coisa que um dos maiores comediantes brasileiros, Amácio Mazzaropi, também sabia fazer.

 

Mazzaropi se tornou o símbolo da cultura caipira após o filme Jeca Tatu, estrelado por ele em 1959.  Não podia ser diferente. No papel do "digníssimo", ele vai além da visão irônica de Monteiro Lobato, apoderando-se de todo poder de interpretação. A história tem três personagens principais: Jeca, o caipira pobre que adora o ócio, é taxado de ladrão, mas, na realidade, preza pela honestidade; Giovanni, imigrante italiano, latifundiário e vizinho de Jeca que se incomoda com as atitudes tolas do preguiçoso; e Vaca-Brava, um “trambiqueiro” de primeira linha que quer se casar com Marina, filha de Jeca Tatu. Ela e Marcos, filho do italiano, namoram secretamente. O plano de Vaca-Brava é fazer as duas famílias se desentenderem de vez para que o casamento se torne impossível.

 

Jeca e Mazzaropi se fundiram. A interpretação, feita de forma magnífica, não deixa dúvidas de que o ator tinha profundo conhecimento da cultura brasileira. O caipira, tão esquecido por alguns, ganhou voz e imagem. O filme foi contemplado com uma trilha sonora extremamente rica e envolvente. Espectadores dotados de maior imaginação têm o privilégio de apenas fechar os olhos e visualizar os cenários, expressões dos atores através da música. Ela, sozinha, pode despertar nosso senso para transformar uma tela monocromática em outra, quase como uma pintura da lavoura brasileira.

 

O filme também retrata a sabedoria popular na figura de Jeca. Exemplo disso está na frase: "se nóis dois comecemos a brigápor causa do burro, nóis dois somo mais burro do que o burro que tá aí". Com esta, o protagonista faz Giovanni ficar quieto em uma discussão sobre um animal que havia invadido suas terras. A tolerância é o lema do personagem criado por Lobato, embora ele não demonstre isso algumas vezes. Orgulhoso, tenta ser dono do próprio nariz. Chega a afirmar que iria embora da cidade para não ficar com os "fracos e espremidos" - ironicamente, sua própria classe. Jeca deve ter dito isso "da boca pra fora", pois nunca conseguiu deixar de ser o Jeca de sempre. Mudou, mas a essência caipira estava lá. Cresceu, mas não conseguiu negar suas origens. Apenas as aproveitou.

 

A crítica social explícita no filme é abordada de forma leve - não leviana. Isso é coisa de bom comediante, uma espécie em extinção. Que nasçam novos Mazzaropis para dar vida a tantos outros estereótipos brasileiros. Ou não. Melhor que isso: que nasçam novos Jecas Tatus para mostrar aos brasileiros o que é a vida deles, minha, sua, nossa.

  
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