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O Prometeu contracultural

 

Kelson Almeida

 

Se enxergássemos talvez o mundo a nossa volta como um verdadeiro organismo lutando para manter-se vivo, em equilíbrio e harmonia, poderíamos entender como os participantes e componentes desta grande construção se encaixam, se conectam e interagem para manter a ordem necessária e fazer o mundo evoluir uniformemente – ou não.

 

Evolução, naturalmente, exige mudanças. E o organismo pedindo por estas transformações necessita que seus componentes analisem,de maneira mais profunda, se a ordem vigente é de fato aquela necessária para manter o mundo girando corretamente. Sendo assim, caso certos participantes deste organismo – aqueles um pouco mais sensíveis e atentos à realidade – notarem uma diferença de ideias, ou notarem a possibilidade de seguir um rumo diferente, trazendo maiores chances de diversificação, podem escolher fazer alguns testes para se certificarem de quecaminhamos pelo caminho correto mesmo quando existem tantas possibilidades de transformar e mudar a realidade a nossa volta. Finalmente, quando estes indivíduos percebem esta fina linha entre “o que é” e o “que poderia ser” ou até mesmo o “que já é, mas ninguém tem coragem de enxergar”, ocorre um previsível choque enquanto o antigo ambiente se reconstrói através de quem pôde entregar novas possibilidades a um mundo, necessitando delas. 

 

Similar ao mito grego de Prometeu, onde o titã trai a amizade de Zeus ao entregar – através da simbologia do fogo – novos conhecimentos e ideologias ao homem e por isso é condenado a passar milhares de anos isolado e acorrentado a um monte enquanto uma águia arranca pedaços de seu fígado regenerativo, o destino daqueles que procuram novos rumos para nossa sociedade pode chegar a um final comparativamente trágico.

 

Movimentos que procuram trazer novas possibilidades para o mundo –entregando o fogo –, tendem a ser vistos pela população geral com desdém e o mais puro preconceito, mesmo quando a maior parte dos críticos sequer conhece a origem destas manifestações. Enquanto isso, a atitude repelente contra os responsáveis por expressarem seus pensamentos e comportamentos tende a fazer destes cidadãos, seres excluídos ou párias. No fim, o único refúgio é ao lado daqueles que compartilham seus pensamentos - dentro de suas tribos e de suas sociedades alternativas.

 

Independente da época, todos os povos já tiveram sua cota de “rebeldes”.  Aqueles que iam atrás de novos rumos, ideias e ideais. Na antiguidade existiram os socráticos e taoístas, ebem mais adiante os iluministas. Mas foi a partir dos anos 1960 que os movimentos contra culturais passaram a trazer resultados rápidos e amplificados graças à crescente globalização, atingindo a juventude em massa.

 

O Movimento Hippie, uma das maioresmanifestações de contracultura na história, pode não ter atingido todos seus objetivos de revolução, mas deixou suas sementes plantadas. E os resultados mantêm-se vivos até hoje.

 

A partir deste período houve um crescimento cada vez mais acelerado em todos os ambientes culturais. Na música,o rock e o rap tornaram-se veículos essenciais para a vocalização de protestos sociais. No cinema, as produções voltadas para questões antes ignoradas ou mascaradas agora ganhavam seu devido espaço. No Brasil, a contracultura foi ferramenta essencial durante a ditadura militar, quando jovens unidos utilizavam a cultura e seus ídolos como ícones na luta pelo direito de expressão. A partir de então, a culturapopular brasileira ganhou contornos cada vez mais independentes através das vozes de Raul Seixas, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Cazuza,Cássia Eller, entre outros.

 

Os movimentos da contracultura ajudaram a construir um mundo onde as possibilidades são inúmeras e a expansão da mente infinita.No entanto, existem outros aspectosbem menos assimilados pela sociedade. Alguns indivíduos decidiramlevar seus métodos de revolução um passo adiante. Marginalizados, cidadãos encontraram sua própria forma expressiva através da pichação. Vista como um ato de transgressão e poluição visual por muitos, e considerada arte por poucos, o movimento do “pixo” é utilizado por sua tribo para difundir, através dos muros e fachadas de prédios das grandes metrópoles, todos os anseios que os atingem. Com caligrafias própriase ininteligíveis para os leigos, a pichação pode até ser considerada feia pela maioria. O fato é que, independente da beleza ou falta desta, a pichação apenas escancara a realidade de seus usuários. É a ferramenta máxima para que possam expressar como de fato enxergam a “selva de pedra” a sua volta. Talvez não seja justo que invadam o campo visual do outro, mas se esta é a única maneira de expressar com sinceridade a realidade que ninguém quer enxergar, o esforço torna-se válido.

 

Afinal, neste organismo chamado “mundo” se algo está fora de seu lugar, precisa ser consertado. Ou se está enfermo, os componentes precisam dar tais sinais. Se nossa sociedade funcionasse para todos, não precisaríamos olhar ao nosso redor e fingir queignoramos paredes sendo usadas como páginas em branco por artistas marginalizadose ansiosos por expressar sua visão de mundo. É visualmente transgressivo? Sim. Mas a percepção que temos do mundo necessita desta transgressão para que tenhamos contato com o que há de mais cru e real.

 

Assim como no mito de Prometeu, a consequência para os que trazem o fogo do conhecimento e da diversificação será o banimento do restante da sociedade, mesmo que a chama mostre-se essencial para a sustentação da vida futura e mantenha-se acesa por todas as gerações. Mas talvez seja convenientemente fácil ignorar a origem do fogo enquanto este nos mantém aquecidos. 

 

 

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