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Qual o sentido da arte?

 

Andréia Moura

 

Comecei a assistir  "Exit Through the Gift Shop" sem muitas expectativas. Mas confesso que o documentário (que traz consigo o terrível questionamento: é realidade ou ficção?) me levou por profundos caminhos de reflexão. O filme, dirigido por Banksy, me fez pensar sobre o valor e sentido da arte (eles existem de fato?); a construção do "eu", da identidade; a ironia dos padrões e comportamentos; a efemeridade de nossas concepções sobre arte e cultura.

 

O que é cultura, afinal de contas? Como conceituá-la? A palavra, por si só, já evoca tantas idéias, significados, traz à mente fragmentos tão diversos recortados de outros conceitos aprendidos desde a tenra idade.  Quando se pensa em "cultura" o HD mental, automaticamente, seleciona coisas como: grupo de costumes, estilo de vida, antigas tradições, todo o conjunto que forma o universo da arte (cinema, musica, pintura, teatro, literatura), enfim, um ajuntamento de toda a experiência humana. Cultura realmente seria isto, a organização da experiência e ação humanas por meios simbólicos. Ao mesmo tempo, este é um conceito absurdamente abstrato. Como poderíamos delimitar espaços, lugares, para algo que engloba toda a essencia humana e o poder criativo intrínseco a ela?

 

Se cultura é tudo, é essencia, é homem, o que é contracultura? Há teóricos que afirmam que a contracultura é o semen que dá origem a toda cultura. É a mãe/pai da cultura. É por causa dela que cultura existe, e só por causa de sua constante insurgência que o mundo evolui. A todo tempo movimentos de contestação, de quebra, de resistencia surgem nas periferias sociais e estes movimentos (a contracultura) é que gestam a cultura do amanhã.

 

"Exit Through the Gift Shop" fala sobre isto, focando-se, essencialmente, na arte de rua. No trabalho dos principais grafiteiros da atualidade. O filme é assinado e dirigido por Banksy. Ele, por si só, já é uma figura polêmica, símbolo de resistencia e contestação. Além de nunca mostrar o rosto, o grafiteiro inglês é responsável pelos trabalhos mais emblemáticos do gênero produzidos nos últimos anos. Incialmente, o documentário (que concorreu ao Oscar) era para tratar do trabalho de Banksy e de outros grandes nomes do grafite, da arte urbana. Mas no fim das contas, se transformou na história de Thierry Guetta, um francês louco, que vive nos EUA, aficionado por filmar tudo o que vê e vive, que largou sua vida, família, trabalho, para passar 8 anos filmando a ação destes artistas de rua.

 

Resulta que Guetta era primo de um grafiteiro conhecido. O tal primo, fugindo da polícia francesa devido a natureza de sua arte, resolve passar uns tempos nos EUA, na casa de Guetta. É entao que Thierry decide sair com o primo para filmar as atividades artísticas noturnas do parente. A partir de então ele entra em contato com dezenas de outros artistas, muitos de renome, inclusive Banksy. Guetta explica a estes artistas que pretende fazer um documentário registrando a arte de rua. Fato que anima bastante os grafiteiros em questão, pois, na concepção deles alguém precisava registrar estes trabalhos que (por serem de natureza contracultural) se tornam tão efemeros.

 

Após 8 anos de filmagens, e milhares de fitas gravadas, Guetta se ve incapaz de produzir um video passível de ser visto. Decepcionado, Banksy recolhe o material filmado e se propõe a produzir algo digno de ser exibido. Enquanto se dedica a um novo processo de edição do material, o grafiteiro inglês sugere a Guetta que vá para casa e que comece, ele mesmo, a fazer arte. O francês segue o conselho a risca, e cria um alter-ego: "Mr. Brainwash". Com o "ego" artista Guetta passa a copiar a arte alheia, e a distribuir, em escalas astronômicas, produtos de arte de rua, que não passam de imitações dos trabalhos dos grandes grafiteiros e contraculturais. Chega a hipotecar a casa e a loja para produzir uma exposição gigantesca, vendendo suas obras por milhares de dólares.

 

Quando Banksy percebe o que sua sugestão provocou, conclui que contar a história deste processo, desta transmutação identitária, da evolução deste personagem que só queria contar a história do grafite, é algo muito mais interessante. E no fim, o documentário que o grafiteiro queria produzir, vira a história de Thierry Guetta.

 

É claro que não podemos dar a Guetta o título de massificador da arte de rua. Os próprios trabalhos de Banksy já haviam se tornado objetos de luxo, já haviam virado modismo e são comercializados por pequenas fortunas. Mas o diferencial do filme produzido por Banksy está no fato de que, ao narrar a pequena odisséia de Guetta, ele nos leva a refletir sobre o sentido da arte e o processo de construção da cultura.

 

"Exit Through the Gift Shop" não é apenas um filme sobre arte urbana, tampouco simplesmente sobre arte moderna, conceitual, e nem ainda sobre arte em um contexto geral. É um documentário a respeito de loucura, fama, obsessão e sobre como o dinheiro apaga a ideologia. Thierry Guetta transforma arte de resistência em produto "pop". Ele massifica a arte. Transforma aquele movimento contracultural em parte do sistema capitalista. Tudo vira questão de dinheiro. E o valor conceitual?

 

Este fenomeno é o que acontece paulatinamente com todos os artistas contraculturais, à medida em que suas imagens se tornam ícones. Algo que Habermas tratou com ênfase, ao explanar a sua  teoria da "ação comunicativa". Para ele, ainda que a sociedade esteja dominada, tal tutela jamais é absoluta.  A todo tempo, das margens afloram movimentos inovatórios. Fenômenos livres da tutela do sistema cultural, mas que coexistem com ele. Estes movimentos procuram criticar o sistema, fazer refletir sobre sua dominação, criar resistencia contra a massificação. Mas, durante tal processo é que se concretiza o que Habermas chamou de  "ciclo de padronização". Em dado momento, este movimento contracultural acaba sendo absorvido pelo sistema, se massificando, sendo incorporado. E o ciclo se repete infinitamente. Movimentos surgem, são massificados, absorvidos e se tornam sistema.  Isto é o que mantem a cultura viva.

 

O documentário de Banksy fala sobre a massificação do processo artístico, mas fala também da transformação que arte causa no homem. Thierry exemplifica, perfeitamente, o sentido que arte deve ter. E em um contexto mais amplo, o sentido de tudo que é contracultural. Seu alter ego, "Mr. Brainwash" (senhor Lavagem Cerebral) é uma pequena ironia da arte em seus dois lados da moeda. O francês é, de certa maneira, sobproduto de uma lavagem cerebral. Mas não aquela a que a arte de rua pretende levar. Ao contrário. Guetta passou quase uma década observando os principais artista de rua trabalharem, mas jamais conseguiu entender a essencia do processo de produção utilizada por eles. Ele se torna (ao se dedicar a arte), portanto, um ser que expele obras de arte sem reflexão alguma. Se interessa apenas em produzir em grande escala e vender. Pouco importa o fato de que  a arte de rua, ao intervir no espaço urbano, deve revelar uma mensagem, por vezes crítica.

 

A lavagem cerebral a que a arte deve direcionar tem a ver com a compreensão de uma mensagem e a uma consequente transformação social. A lavagem cerebral a que deve dedicar-se não aliena, transforma. Seu papel é transmutar o homem. E mais, transmutar seu ambiente. Este é o seu sentido, sua função, a razão de sua existência.

  
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