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O homem não-civilizado

 

Kelson Brecht

 

Ele não precisou aprender se tinha o direito ou não de utilizar algo tão simples. Assim como qualquer outro ser do ar, da terra e da água, usufruir a última deveria ser tão natural quanto desfrutar os outros dois.

 

Ele aprendeu a criar ferramentas e armas. Aprendeu a caçar. Construir moradias, e a sustentá-las e protegê-las. Descobriu o fogo, com o qual pôde preparar seu alimento e se manter quente e confortável. Reproduziu-se e expandiu sua existência pela face do planeta. Expandiu também sua consciência, inteligência e capacidade de sentimentos e emoções. Amou. Descobriu. Guerreou. Matou e conquistou. Civilizações subiram e caíram. Tudo isso o ‘homem’ aprendeu, construiu e desconstruiu. Compreendeu que parte de ser civilizado, ou simplesmente fazer parte de uma civilização, significa usufruir de tudo o que um dia os ancestrais conquistaram e perpetuaram. Se somos dignos de tais bens adquiridos há milênios, isso, cabe a cada um decidir.

 

O que foi severamente compreendido através da evolução da sociedade e se tornou a tarefa primordial daqueles no poder foi conceder - por direito - vida, liberdade e propriedade. A partir do momento da aceitação de tais imposições, os poderosos devem ter total ciência da realidade a sua volta. Por exemplo, deve-se conhecer a extensão das reservas naturais e saber como elas podem ser utilizadas corretamente.

 

Os primeiros povos sabiamente colonizaram às margens de rios e fontes. Na Antiguidade, os persas, gregos e romanos aprenderam como administrar seus recursos. Vivendo em regiões áridas e semiáridas, tais civilizações tinham como missão básica usar as fontes de água para abastecer seus centros urbanos; utilizando cisternas, poços, canais e imensos aquedutos. Os limites da invenção humana eram desafiados à fim de atingir os direitos da população.

 

Mesmo em tempos onde as cidades atingiam grande densidade demográfica e a demanda de água se tornava quase insustentável, o planejamento foi essencial no combate a quaisquer possibilidades de seca. O homem da Antiguidade nos deu como legado a compreensão de que o sustento de um grande centro populacional depende do bom planejamento daqueles que detêm o poder. Assim, o homem civilizado entende seu dever de zelar pelos direitos dos demais.

 

Há um casamento entre a população e o poder vigente para impedir eventuais desperdícios. Caso a população saia do controle, cabe ao governo tomar as medidas necessárias. Entre elas, informar as causas e consequências do uso insensato de determinada matéria- prima. O desmatamento, o desperdício de água e a extinção de animais são apenas alguns dos atos a serem impedidos antes de atingirem níveis irreversíveis. Portanto, é fácil culpar a população quando algo dá errado, principalmente quando o governo não toma as medidas necessárias para impedir o problema. Afinal, assegurar o cumprimento das leis também é dever do Estado. Um povo mal informado e impune jamais aprenderia.

 

Olhando para o cenário atual do Brasil vemos o “homem civilizado” alienado a seus deveres. Com a seca atingindo o Sudeste, principalmente o estado de São Paulo, vê-se que além da população não ter aprendido a respeitar os limites dos recursos hídricos, também há a falta de comprometimento do governo no fornecimento deste serviço básico ao cidadão.

 

Independente dos números do desperdício, desmatamento e densidade demográfica, um governante competente utiliza os órgãos acessíveis de gestão para levantar índices que certificam o futuro dos recursos disponíveis. A presença da inconsciência é bastante previsível a partir do momento em que aqueles responsáveis pelo alerta e planejamento mantém todos no escuro. Se povos antigos e com recursos tecnológicos ancestrais tinham a capacidade de fazer tais previsões e logo após tomar medidas cabíveis para impedir secas de acontecerem, por que em pleno século XXI havemos de aceitar esta escassez na maior cidade da América Latina e, ainda, colocar a população “inconsciente” como culpada?

 

Na verdade, as previsões já apontavam para a seca atual. Desde a criação do Sistema Cantareira, na década de 1960, já existiam planos de ampliação nas décadas seguintes. Os dados, no entanto, passaram despercebidos e o planejamento foi aparentemente esquecido. Desde então, o Brasil sofreu um exponencial desmatamento da Floresta Amazônica, principal fonte da corrente provedora de umidade e chuvas para o Sudeste. Além disso, houve um crescimento populacional e industrial desenfreado, contribuindo para um consumo ainda maior. As mudanças já eram observadas há décadas. Porém, nenhuma providência foi tomada e quando o momento crítico chegou, não houve avisos. Os responsáveis, agora, se fazem de desentendidos e culpam o consumidor ou “cliente”.

 

Fornecer o bem mais precioso para a vida deixou de ser uma exigência natural da civilização para ser um negócio. O governador Geraldo Alckmin prometia bônus nas contas de água àqueles que participassem de uma espécie de “Programa de fidelidade da escassez”. Também “não enxergando” que era tarde demais, negou desde o princípio o racionamento vivido há meses pelo estado de São Paulo.

 

Ignorando todos os sinais e avisos, Alckmin e os órgãos do estado – a Agência Nacional de Águas (ANA) e a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) – encobriram, ao máximo, a possibilidade do quadro ter sido revertido a tempo caso tivessem planejado as manutenções necessárias no Sistema Cantareira. Apesar da tentativa de ocultação da realidade, o caso chamou a atenção de entidades como a ONU e diversos cientistas e autoridades no assunto. Em pouco tempo foi constatado o tamanho da incompetência.

 

Investir no que é nosso por natureza deixou de ser prioridade para aqueles que nos prometem o funcionamento total desta sociedade construída através da história. O ‘homem’ que falha no comprometimento de fornecer algo de direito da natureza universal deve ter esquecido o significado de civilização. 

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