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O Globo e os suspeitos

 

Kelson Brecht

 

A cadeia de problemas originados com uma seca é ameaçadora. Como bem mais precioso para nossa sobrevivência, a água é como sangue que corre nas veias do corpo de nossa sociedade, abastecendo todos os setores e serviços disponibilizados por nossos governantes e provedores industriais e rurais.

 

Este organismo, semelhante ao humano, é frágil e suscetível a doenças, calamidades e ataques. Corte uma artéria ou perfure o coração e assista ao esmaecimento da matéria. Enquanto o corpo morre, tente descobrir o culpado pelo ataque homicida. Entre os suspeitos no local estão a descontrolada “mãe natureza”, o cego governador e o estúpido cidadão comum. Ou então seja um pouco mais rápido – e discutivelmente menos ou mais inteligente – e peça socorro a todos eles. Porém o socorro tarda e a morte logo não será mais mera probabilidade, mas certeza. E assim, como nenhum deles veio ao socorro, suspeitar de todos se torna tarefa fácil.

 

Após anos de desflorestamento, mudanças climáticas, alto crescimento demográfico, desperdício e, principalmente, a má administração e gestão dos órgãos responsáveis pelo fornecimento e manutenção dos reservatórios de água, a seca chegou primeiramente de fininho e, logo depois, jorrou sobre a vida da população no Sudeste e do maior centro econômico e industrial da América Latina. São Paulo agora deveria não apenas enfrentar a poluição e a violência, mas também um verão escaldante e seco.

 

Mesmo não sendo o primeiro verão ardente dos últimos anos, e mesmo não sendo novidade que o desmatamento encontrava-se descontrolado – assim como as consequências climáticas –, a estiagem veio e logo todas as áreas mantenedoras deste corpo começaram a falhar. Logo, descobrir os culpados e acompanhar de perto as consequências tornou-se tarefa relativamente difícil para uns e fácil para outros. A mídia, então, toma o posto de investigadora do caso.

 

O jornal O Globo, pertencente ao Grupo Globo da família Marinho, tentou expor a realidade enfrentada pelo Sudeste e informar as pistas dos suspeitos e apontar os culpados. Muitas vezes tais pistas são – como de praxe para uma mídia “imparcial” - sutilmente passadas ao leitor. Através de suas diversas matérias e reportagens, O Globo desmembrou alguns dos setores afetados pela seca com o ligeiro cuidado de apontar os deslizes daqueles considerados culpados.

 

Em títulos como “Crise hídrica no Sudeste faz Agência Nacional de Águas reduzir vazão do Rio Paraíba do Sul” e “Caso a crise hídrica se agrave, paulistas podem ficar cinco dias sem água por semana”, o jornal apenas deixa claro a situação da região e as consequências por vir. Já em “Pezão descarta racionamento e aumento da tarifa de água no estado do Rio”, o texto esclarece a posição do secretário estadual do Ambiente com relação a má gestão dos recursos hídricos. Segundo o secretário, “arte da crise, é de responsabilidade da má administração dos reservatórios do Paraíba do Sul”. Ele explica que, “através de manobras, já conseguiu economizar cerca de 400 milhões de litros”. De maneira sutil e completamente indireta, O Globo utiliza a fonte para expor uma opinião referente aos culpados pela crise.

 

Logo após, expõe a situação das escolas e universidades frente à escassez nas matérias intituladas “Devido à crise hídrica, escolas de São Paulo enfrentam dificuldades na volta às aulas” e “Universidades de SP criam fórum para enfrentar crise hídrica”. Sem muitos rodeios demonstram claramente a opinião de cientistas e autoridades no assunto, assim como a opinião da população. As matérias “SP, MG e Rio: 87% atribuem crise hídrica aos governantes, diz pesquisa” e “Cientistas criticam gestão de crise hídrica no Sudeste” escancaram como a má administração dos governantes e órgãos públicos responsáveis foi o maior fator contribuinte para a seca. O segundo texto é aberto da seguinte maneira: “os reservatórios vazios no Rio e em São Paulo refletem uma sequência de gestões desastrosas, que viraram as costas para equipamentos antigos — uma renovação necessária para atender ao crescimento populacional e aos eventos extremos”. Se a abertura não fosse seguida de: “a sentença vem de 15 cientistas especializados em recursos hídricos, que traçaram um diagnóstico da atual crise no Sudeste no documento “Carta de São Paulo”, divulgado ontem pela Academia Brasileira de Ciências”, seria impossível esclarecer melhor o posicionamento do veículo.

 

Entre maiores exposições das consequências da seca estão as matérias “Valor do prejuízo causado pela seca é estimado em R$ 10 milhões, segundo governo do estado” e “Jardins públicos da cidade deixam de ser verdes por causa da seca”. No cenário pós-eleições, a reportagem “No primeiro mês, promessas eleitorais não resistem à vida real” expõe a fragilidade dos governantes ao reagirem incorretamente ao cenário da seca.

 

Se dependermos das investigações d’O Globo e uma nova visita à cena do crime poderemos concluir que o cego governador não estava realmente cego, mas simplesmente de olhos fechados. E, enquanto o estúpido cidadão comum forçava a descontrolada “mãe natureza” a cometer o hediondo crime, permaneceu quieto e atento, sem jamais levantar um dedo para impedir ou prevenir o ato. 

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