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A matemática da crise

 

Como a estiagem, os excessos da população e a negligência das autoridades provocaram a maior crise hídrica da história de São Paulo 

 

Alysson Huf

 

O ano de 2014 entrou para a história como um dos mais estressantes para os paulistas. Com uma escassez de água que não se registrava desde o fim República Velha, na década de 1930, o estado mais populoso da federação se viu à mercê de condições climáticas hostis e de uma gestão negligente do governo estadual e da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo, a Sabesp. A crise hídrica alterou a rotina da população, especialmente a dos paulistanos - os mais afetados pela estiagem. Armazenar água em baldes e garrafas, assim como ver caminhões-pipa abastecendo prédios e condomínios, passou a integrar o cotidiano dos moradores da capital. E é consenso entre os especialistas que, em 2015, esse quadro medonho pode ser retocado com pinceladas ainda mais trágicas.

 

"Temos fechado o chuveiro durante o banho, reutilizamos a água da máquina de lavar, colocamos mais roupa na máquina para lavar menos vezes e evitar o desperdício; também não lavamos mais o quintal como antes", conta Beatriz Neumann, estudante residente em Cosmópolis, uma das 35 cidades do interior paulista que sofrem com o racionamento desde outubro do ano passado. O município foi dividido em dois setores e um rodízio de cortes de água foi montado. Assim, a cada dia, um dos setores fica sem abastecimento entre a 8h e às 18h. "O maior incômodo ocorre quando precisamos da água para lavar roupa, mas não tem; ou quando a água vem mais tarde e chega suja", aponta.

 

AS CAUSAS

 

A crise, que também afeta outros estados do Sudeste, foi desencadeada por três fatores proeminentes. O primeiro deles é o clima. O período de chuvas, que se estende de outubro a março, foi marcado por uma estiagem acima do normal entre os anos de 2013 e 2014. Como consequência, não choveu o suficiente para manter cheios os reservatórios do Sistema Cantareira, principal responsável pelo abastecimento de São Paulo. O segundo motivo para a escassez de água é a alta taxa de crescimento populacional associada a índices elevados de consumo de água, não só em terras paulistas, mas em todo o país. Segundo a Organização Mundial da Saúde, a OMS, para higiene e consumo geral, uma pessoa precisa de aproximadamente 110 litros de água por dia. No Brasil, gasta-se o dobro, 220 litros por dia - ou mais.

 

A culpa, porém, não é só da população em geral, mas também da indústria e da agropecuária, como terceiro motivo. De acordo com informações da Sabesp e da ONU, para se fabricar um único carro gasta-se, em média, 400 mil litros de água. Para a produção de um quilo de carne bovina e um quilo de carne de frango, são gastos 17,1 mil e 3,7 mil litros, respectivamente. Já a mesma quantidade de arroz consome 2,5 mil litros até chegar à sua mesa. A matemática é simples: poucas chuvas + consumo exagerado de água=crise no abastecimento. Apesar disso, para o engenheiro urbano André Bressa o resultado dessa conta poderia ser diferente se não fosse (e aqui entra o terceiro fator) a má gestão dos recursos hídricos. "A crise hídrica é resultado também da falta de planejamento que vem ocorrendo nas últimas décadas e tem consequências agravadas pela concentração de população em grandes centros urbanos", explica.

 

Numa reunião realizada em fevereiro no Rio de Janeiro, especialistas da Academia Brasileira de Ciências afirmaram que a crise hídrica que atinge o Sudeste era prevista há mais de um ano. Os cientistas criticaram a negligência, bem como a falta de transparência e a demora das autoridades em tomar decisões. Bressa comenta que, embora os períodos de estiagem e os de chuvas intensas sejam previsíveis, as autoridades precisam estar preparadas para eventuais surpresas climáticas. Segundo o engenheiro, elas "devem, sempre que possível, realizar um planejamento visando garantir a segurança hídrica da população". Mas não foi isso o que aconteceu no estado de São Paulo.

 

NEGLIGÊNCIA

 

Desde 2004, a Sabesp já estava ciente de que deveria tomar providências para evitar o desastre. Naquele ano, a companhia renovou a licença federal obtida em 1974 para a construção e operação do Sistema Cantareira. No documento de renovação de outorga (figura a baixo), entre as exigências estava a de que a empresa deveria investir em novos sistemas que captassem água de outros mananciais com o objetivo de se tornar menos dependente do Cantareira. A única medida concreta da Sabesp desde então é a construção do Sistema São Lourenço, que capta água no Vale do Ribeira, ao sul de São Paulo, mas cujas obras estão atrasadas e só devem ficar prontas em 2018.

 

  fonte: http://www.comitepcj.sp.gov.br/download/Portaria-DAEE-1213-04.pdf

 

 

Outro problema, que poderia ser amenizado por uma melhor gestão dos recursos hídricos, é o desgaste das tubulações subterrâneas responsáveis por levar a água do reservatório até as residências. Segundo dados da própria Sabesp, 51% da rede de abastecimento da Região Metropolitana de São Paulo tem mais de 30 anos. Devido a ineficiente manutenção de toda essa malha hidráulica, cerca de 31% da água tratada é perdida no meio do caminho. No centro de São Paulo, as perdas podem chegar a 51%.

 

CONSEQUÊNCIAS

 

As consequências da crise hídrica para a população vão muito além da simples falta de água. Nos dois primeiros meses de 2015, o número de mortes causadas pela dengue aumentou 380% no estado de São Paulo em relação ao mesmo período do ano passado. Parte da dificuldade no controle da doença se deve ao armazenamento inadequado de água que muitas pessoas fizeram durante os últimos meses, especialmente para enfrentar os cortes de água e o risco de racionamento. Além disso, segundo estimativa da Federação das Indústrias de São Paulo, a Fiesp, pelo menos 60 mil negócios - que empregam 1,5 milhão de trabalhadores - devem ser afetados pela estiagem. O plano da Federação é que as empresas se unam para construir poços e garantir o abastecimento.

 

A falta de chuvas também prejudicou a produção de hortaliças e verduras. No estado de São Paulo, estes alimentos tiveram uma alta no preço de 70% só em janeiro. Outro problema da estiagem é a crise no setor elétrico. De acordo com uma estimativa da PSR Consultoria, a conta de energia deve ficar 41% mais cara em 2015. Um possível racionamento de energia faria o país fechar o ano com uma alta de mais de 8% na inflação e 6,5% na taxa de desemprego. O crescimento do Brasil pode ficar abaixo de zero. Embora este ano tenha começado com chuvas dentro da média histórica, a população não tem motivos para ficar despreocupada: os reservatórios estão com menos água do que no mesmo período do ano passado e a estação chuvosa, que termina no fim deste mês, só volta no final de outubro. A pior parte dessa tragédia toda ainda não chegou.

 

Finalmente, enquanto as autoridades se esquivam da culpa e fazem malabarismos para gerir o caos, resta ao povo brasileiro se preparar para um crise geral e aprender a utilizar a água de forma responsável. É preciso pensar no futuro. "Os governos podem se planejar para eventos como este buscando alternativas através do reuso de água, captação de água de chuva, melhoria no sistema de abastecimento e promovendo a proteção dos seus mananciais", analisa Bressa. Segundo ele, a população precisa se conscientizar que a água é um bem público de valor econômico e escasso, devendo, por isso, ser preservado para a manutenção da qualidade de vida da geração atual e das que ainda virão. Para a estudante Beatriz Neumann, esse período que o país vive poder ser um bom momento para reflexão e mudanças de hábitos. "Acho que o racionamento, mesmo sendo uma coisa chata, muda nosso pensamento a respeito da quantidade de água que consumimos. E isso acaba sendo um ponto positivo nisso tudo", conclui. 

 

 

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