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O menino da Rocinha e a pauta social

 

Na era da informação descentralizada e do novo paradigma emissor-receptor, o papel de moldar o debate público sai do vertical para o horizontal. E aí, quem vai colocá-lo na pauta?

 

Guilherme Cavalcante

 

Vivemos uma época de crise. Uma crise de representação. Há décadas, pensadores como Jean Baudrillard, Zygmunt Bauman e François Lyotard já previam essa crise para o ambiente vivenciado pela nossa, já adulta, Geração Y. Aqui no Brasil, um dos primeiros a identificar esse cenário foi Muniz Sodré. Em sua obra “A máquina de Narciso”, lançada há 24 anos, ele cita um exemplo que poderia muito bem ter sido extraído na noite passada. Uma pesquisadora, ao indagar um engraxate morador da Rocinha sobre o que ele gostaria de ver na televisão, recebe como resposta um simples: “eu”.

 

Apesar de usado em outro contexto por Sodré, esse pequeno relatado expõe a distância entre a mídia corporativista dos dias atuais e o cidadão. Mesmo em municípios minúsculos, como é o caso de Artur Nogueira, no interior paulista (há cerca de 150 km da capital), a preocupação comercial e política dos meios de comunicação consegue fazer a imprensa deixar de lado o aprofundamento de questões sociais e o engajamento dos cidadãos em prol de uma mudança na realidade local (um artigo sobre o assunto chegou a ser apresentado no Unasp). Se a situação é assim em lugares menores, imagine em um contexto de mídia globalizada – marcada por grandes corporações interligadas e obtendo quase um monopólio do acesso à informação.

 

Não quero aqui – parafraseando o apóstolo Judas – blasfemar contra tudo o que é imprensa. Nestes novos tempos, cercados por meios de comunicação interativos e digitais, é incabível a visão de uma mídia onipotente, capaz de controlar e organizar todos os fluxos sociais do planeta. Ela ainda é muito poderosa e pauta boa parte do nosso cotidiano e atua de modo central no regime tecnovisual da indústria consumista. Porém, sofre para acompanhar as novas redes de comunicação e abre espaço – apesar de pequeno – para conteúdos inovadores e revolucionários.

 

O caminho não é unilateral

 

É errôneo também o desejo de imputar aos grandes veículos de comunicação, às mega corporações, o dever – quase cívico – de um papel pedagógico de compreensão e descoberta. Não adianta clamar a Abraão, como fez o rico: “molhe em água a ponta do dedo e me refresque a língua”. Já dizia Jesus, “está posto entre nós e vós um grande abismo”. Enquanto se vociferam palavras ao léu contra o “Império do Mal” – a “temível” grande imprensa – o meio alternativo fica no escanteio.

 

No paradigma atual, a figura de uma mídia formadora no esquema vertical é quebrada por um horizonte multifacetado– uma verdadeira teia de aranha. Se a demanda atual é a do “todos-todos”, porque não imaginar uma mídia alternativa formadora, capaz de suscitar o debate social – uma releitura do agenda setting de McCombs e Shaw. Considerando o caráter corporativo da grande mídia, por que não pensar na expressão cultural e de identidade contida nos jornais e rádios comunitários espalhados – e reprimidos – ao redor do Brasil?

 

Uma pauta midiática onde aquele rapaz da favela da Rocinha possa se ver representado não cabe em uma visão instrumental dos meios de comunicação e de suas funções. É por meio da imprensa alternativa, ou ao menos começando por ela, que os debates podem fugir da agenda política e econômica dominante migrando para o social. Como ponderou Sodré, na sociedade atual, aquilo que incomoda, que é estranho ao estamento dominante (chamado por ele de “grotesco”) não consegue fazer parte da pauta pública, sendo renegado à Quiriate-Arba, antiga cidade de refúgio israelita para onde iam assassinos nos antigos tempos bíblicos.

 

Cabe a VOCÊ, mídia, a NÓS, mídias, fazer o impossível. Dar voz àquele menino da Rocinha. Aquele que disse “eu”.

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