Quem somos nós?
Há algum tempo, enquanto perambulava sem rumo pelas páginas da internet, sapeando por assuntos de interesses diversos, me deparei com uma das brilhantes tirinhas de Quino, protagonizada, é claro, por Mafalda. Na tira, a menina precoce, sentada frente a uma televisão, se indigna e resolve desligar o aparelho. Enquanto realiza o procedimento, resmunga sua insatisfação com a tendência dos meios (especialmente da TV) de ditar o que as pessoas devem comer, comprar, fazer e pensar. Mafalda termina seu resmungo perguntando: “quem eles pensam que nós somos?” Passado um instante (se é que se pode mensurar este tipo de coisas em tiras), ela faz a si mesma outra pergunta ainda mais inquietante: “e quem nós somos?” É então que decide ligar outra vez o aparelho televisivo expressando uma verdade incontestável: “os malditos sabem que nós ainda não sabemos”.
Ouso conduzir esta reflexão mais além ao procurar sistematizar a essência do “existir”. O que significaria “ser”? Descartes encontrou, muito antes de nós, uma forma de colocar em palavras o abstrato ao dizer: “penso, logo existo”. Existir é pensar, pensar é existir e, portanto, nossa essência (a matéria da humanidade) é aquilo que transita por nossas mentes. Dominar, conduzir, sugestionar o pensamento é controlar a existência e seus agentes (os homens). Quem detém o poder sobre os pensamentos humanos? Nós? O meio (físico)? Os poderes cívicos? Os poderes religiosos? As mídias?
Definitivamente (para o bem ou para o mal), esta última é a sócia majoritária no empreendimento do existir. Há muito ela tomou para si a liberdade (e responsabilidade) de definir o que as pessoas vão/devem pensar. E, automaticamente, o que vão fazer, falar, onde e com quem irão fazer e falar. Um poder que ganhou espaço e força, principalmente porque pouco a pouco nos eximimos da responsabilidade de compreender, decidir, saber quem somos nós. Logo, alguém precisa nos dizer quem somos. Criou-se, portanto, uma profunda relação de dependência, uma simbiose meio doentia, entre a humanidade e os meios. Já não conseguimos viver sem eles, já não sabemos viver sem que eles nos digam como viver, já não queremos pensar sem que nos digam o que pensar, já não sabemos “ser” ou “quem ser” sem a firme regência midiática.
E é sobre isto que a 141ª edição do Canal vai tratar. A teoria do Agendamento (Agenda Setting). A idéia de que a mídia é quem determina as pautas do debate social. Ela conduz, sugestiona o público e o particular. O que é verdade ou mentira, o que importa ou não, o que somos ou não somos e mais, quem nós somos. Os textos produzidos por nossos articulistas tratam das relações que tal agendamento mantém com questões como democracia, moral e ética, formação opinativa, preconceito, justiça, autoestima, conhecimento, influência. Trata também da tendência, cada vez mais presente, de uma retomada (por parte do homem) das rédeas de sua existência. A tendência de se independer dos mecanismos midiáticos, de utilizar a mídia como ferramenta e não mais como oráculo moderno, subvertendo a ordem do agendamento. Dominando a ação do pautar, até então território exclusivo da mídia.
É preciso esclarecer que, tal independência, é fruto de uma sociedade que se organiza cada vez mais por meio de plataformas e linguagens convergentes. A própria mídia tem se adaptado à realidade da convergência na tentativa de manter a força de seu poder sugestionante. Nesta primeira edição do ano o Canal demonstra que também vai se render a estas tendências. A partir de agora procuraremos trabalhar linguagens convergentes em nosso fazer jornalístico. Quando pensamos que “informação é responsabilidade” não podemos deixar de buscar uma atuação que atenda mais efetivamente a um público cada vez mais conectado e independente dos velhos meios de prestação de serviço. Um público que procura, mais nitidamente, aprender quem é e faz isto utilizando plataformas informativas diversas.
O uso das multiplataformas, reconhecidamente, gera material, conhecimento, muito mais rico, profundo e, por que não, subjetivo. Está será a missão do Canal. Aprofundar nossos conteúdos (por meio de diversas plataformas) e produzir, de forma responsável, material reflexivo e potencialmente promovedor de mudanças.
Retomando o tema desta edição, é preciso entender que antes de demonizar a atuação condicionante da mídia e a questão do Agendamento, precisamos reconhecer que isto é, quase que na totalidade, nossa culpa. Termino com a máxima grega “conhece-te a ti mesmo” e então subverteremos o agendamento. Só é possível “contra-agendar” respondendo a questão essencial: quem somos nós?
Andréia Moura
Editora-chefe do Canal da Imprensa