A função do terrorismo nas narrativas jornalísticas
Enquanto o mundo segue acompanhando as ações destruidoras do patrimônio histórico da humanidade do grupo que se autointitula ‘Estado Islâmico’ (EI), no norte do Iraque, as perguntas que surgem é porquê, pra quê e como tudo isso foi acontecer.
Cley Medeiros
O dito “terrorismo” associado às últimas ações desse grupo não tem consenso de definição pelos países que decidiram “enfrentá-lo”. E, consequentemente, nem mesmo as mídias que o propaga entram em sintonia com relação ao significado da palavra. Dessa forma, resta a superficialidade de termos generalistas nas narrativas dos grandes meios de comunicação. Uma evidência de que as redações têm uma deficiência compreensiva e vocabular na percepção de fatos internacionais. Não aliando em suas narrativas publicadas a história contextual dos eventos atribuídos à grupos chamados “terroristas”.
Assim, há um distanciamento entre o fato político e o fato noticioso, gerando então uma bola de neve de definições que vão desde o terrorismo de estado ao terrorismo praticado por motivação religiosa. Mas como nomenclaturar ações violentas contra grupos de pessoas que em muitos casos não tem relação com a fonte de tais atos?
Embora o terrorismo figure desde 2001 como a principal ameaça para os Estados Unidos, por exemplo, não há, dentro da legislação do país, uma definição unívoca quanto ao termo¹. Inglaterra, França e Rússia, grandes potências mundiais, também não possuem interpretação exata, ainda que ações comandadas por esses países sejam recebidas como atos de terror² por grupos minoritários.
A indefinição conceitual reflete o desafio de se esclarecer um fenômeno com valores altamente subjetivos para quem o utiliza como prerrogativa de ação em política externa. Uma acusação de terrorismo é sempre percebida do ponto de vista do “eu” sendo atacado pelo “outro”, em que o “eu” representa o bem, e o “outro”, o mal. O simples fato de se rotular uma nação ou região, na sua completude, como terrorista – ou apoiadora do terrorismo – carrega, em si, um caráter pejorativo, em virtude do qual certas nações e/ou regiões passam a ser percebidas como territórios dotados de grupos e indivíduos capazes de utilizar instrumentos violentos de afirmação do poder e que, portanto, merecem ser punidas por aqueles que estão “do lado do bem”.
Embora haja grande dificuldade de se identificar previamente estes indivíduos, uma das possibilidades é o monitoramento de atividades ligadas ao terrorismo na Internet. E embora a associação do terrorismo contemporâneo ao chamado jihadismo tenha crescido após o 11 de setembro, as diversas listas de grupos terroristas divulgadas por Estados e organizações internacionais incluem perfis ideológicos variados e com motivações reversas.
Segundo Weimman, professor da Universidade de Columbia (EUA), na maioria dos casos, as reações de invasão ocorrem sob a perspectiva do antigo colonialismo, como foi o caso do Irã em 1972. Documentos tragos à tona anos depois através da operação “Argo” feita pela Inteligência Estadunidense (CIA) comprovaram a intervenção americana na política interna iraniana, causando desestabilidade econômica, política e religiosa; fato que deu margem à sustentação de grupos radicais.
Mocinho
À exemplo das narrativas jornalísticas empregadas a partir do 11 de setembro, não procurou-se estabelecer a óbvia diferença entre os religiosos muçulmanos que praticaram a Jihad e os demais praticantes do Islã espalhados pelo planeta, principalmente em solo norteamericano. Posteriormente, de acordo com a opinião de estudiosos da mídia como Noam Chomsky, textos publicados nos diversos jornais impressos dos Estados Unidos “fortaleceram a visão unilateral de um conflito muitas vezes construído por quem pretende destruí-lo”. O que aponta para o não alinhamento do fato noticioso às percepções históricas sobre os eventos ditos “terroristas”.
O Washington Post, por exemplo, antes dos atentados de 2001, não buscava utilizar a palavra “terrorismo” para designar ações violentas contra pessoas ou patrimônios, exceto quando as ações eram praticadas por não- americanos ou por pessoas de origem muçulmana em solo americano. Por isso, a Guerra ao Iraque, por exemplo, sobreviveu nas narrativas do jornal como “Guerra ao terror”.
Algumas das ações norte-americanas no âmbito da “Guerra ao terror” implicaram a deterioração da imagem dos Estados Unidos junto à opinião pública em outros países. Este processo contribuiu para minar a legitimidade do país enquanto responsável pela manutenção da paz e da segurança internacionais. No Reino Unido, principal aliado dos EUA na chamada “Guerra ao terror”, o percentual da opinião pública com visões favoráveis sobre os Estados Unidos diminuiu de 73% para 54% entre os períodos 2002-2003 e 2006-20073 . E, em outros países da aliança, a deterioração da imagem norte- americana foi ainda pior. Para os governos que optaram por apoiar os Estados Unidos em algumas de suas ações mais polêmicas, houve um custo político interno crescente.
Ao avaliar os custos econômicos da Guerra ao Terror, o projeto Costs of War estimou que o gasto público norte-americano para esse fim, entre 2001 a 2013, alcançou o montante de US$ 3,1 trilhões, quatro vezes mais do que os americanos gastam com saúde pública.
Ovo da serpente
O primeiro governo de George W. Bush, de 2001 a 2004, serviu de base para a política de segurança dos Estados Unidos nos anos subsequentes: o chamado neoconservadorismo. A crença na ideia de que os Estados Unidos são o “país escolhido” para a liderança moral da humanidade foi a ideologia proposta para enfrentar o chamado terrorismo pós 11 de setembro. Este traço é proveniente do ideário puritano calvinista presente na população que povoou os Estados Unidos no início de sua história, extensivamente explicado por Max Weber em “A ética protestante e o espírito do capitalismo”.
Tal reflexo foi fruto de uma conjunção de valores e eventos que modelaram a realidade da política exterior dos Estados Unidos conforme os interesses de indivíduos ligados a esta linha ideológica.Tornaram-se marcantes, após o 11 de Setembro, as várias nomeações de indivíduos provenientes de fundações e institutos abertamente neoconservadores para cargos importantes para a política externa, tornando ainda mais deficitária a proposta de compreender fenômenos terroristas ao redor do mundo4.
A sina do Estado Islâmico em se afirmar supremo nos territórios ao norte do Iraque evidencia o desastre da política externa de diversos países, como Estados Unidos, o qual se utiliza do discurso anti-terror, para impor narrativas jornalísticas distante dos alvos do lead, que se preocupa em responder o básico: “o que, quem, como, onde, porquê e quando”. Assim, sem essas respostas fica difícil ter jornalismo.
¹ Drew, 2003; Finguerut, 2009, p. 14; Singh, 2006, p. 16
² Peniago et al., 2007 p. 16
³ PewResearch Center, 2012, p. 58-60
4 Jackson e owle, 2006, p. 28