A implementação da Chari'ah
Conversamos nessa edição de “Terrorismo” com o professor de Relações Internacionais da Universidade de Vila Velha - UVV, Helvécio de Jesus Junior. Confira a entrevista concedida ao Canal da Imprensa.
Daniela Fernandes
Canal da Imprensa: Não sei se é possível ou se existe um consenso, mas como podemos entender o conceito de terrorismo?
Helvécio de Jesus Junior: Esse é o primeiro fator problemático, pois não existe um conceito universalmente aceito. No Brasil, por exemplo, existe uma definição adotada pela Agência Brasileira de Inteligência que inclui atos de sabotagem, preparações de quadrilhas e de grupos terroristas. Universalmente, em termos de política internacional, ainda não existe um tratado ou uma convenção no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU) onde todas as nações concordam plenamente com o conceito de terrorismo. Isso é um problema, pois alguns países adotam uma definição mais restrita e outros países adotam uma definição mais ampla, o que dificulta a coordenação entre esses países para uma política comum de combate e contraterrorismo. Então, não existe um conceito plenamente aceito e harmônico entre as nações.
C.I: Existem alegações de que os governos e também os meios de comunicação fazem uso político do termo “terrorismo”. Isso realmente acontece?
Junior: Sim, isso acontece pois não existe nenhum governo ou mídia totalmente isenta ou totalmente imparcial. Todos tem interesses políticos e interesses de poder. E esses interesses, muitas vezes, são apresentados pela forma como se define o terrorismo. É muito criticada a forma como os americanos definem o terrorismo, no entanto, é preciso entender o contexto no qual eles viveram o terrorismo. São países que de fato vivem sob ameaça restrita do terrorismo, não só nas suas bases militares ao redor do mundo, como também no seu território. Foram atacados em 11 de setembro de 2001 no próprio território americano, então é óbvio que eles terão uma sensibilidade muito maior para a definição do terrorismo. Além de suas leis de segurança nacional serem mais severas.
C.I: Há um interesse geoestratégico?
Junior: Sim, isso certamente tem haver com o cenário geoestratégico. Porque no caso da política de contraterrorismo é preciso colocar um divisor de águas que foi o 11 de setembro de fato. Antes do 11 de setembro, as políticas de contraterrorismo eram pontuais, por exemplo na Inglaterra com o problema do IRA, Sendero luminoso no Peru, as Forças armadas revolucionárias da Colômbia (FARC), enfim, vários grupos locais com interesses diversos. Alguns com finalidades bem políticas, bem restritas, como o ETA no País Basco, e outros já incluídos em uma perspectiva do terrorismo de cunho religioso, por exemplo grupos terroristas islãmicos. A Al-Qaeda mudou essa situação no 11 de setembro ao colocar o escopo e o objetivo do terrorismo em âmbito global, não passou a ser um objetivo localizado. O Bin Laden dizia claramente que tinha por objetivo destruir a civilização ocidental de tradição judaica e cristã. Era um objetivo incansável ou impossível, no entanto, a fundamentação religiosa radical fazia com que eles acreditassem nisso. Os EUA e seus aliados tiveram que lutar contra o terrorismo em escala global, algo nunca antes visto, porém não estavam preparados para isso. Agora sim, entramos em uma nova fase de contraterrorismo, onde parece que a Al-Qaeda está mais fragilizada e a ameaça principal que surge agora é o Estado Islãmico, o retorno do Califado.
C.I: É possível atribuir o terrorismo à filosofia muçulmana?
Junior: É preciso distinguir algumas coisas, porque pode haver algum preconceito da tradição filosófica islãmica que é algo muito grande. Não existe uma unidade de pensamento homogênea. Mas, contudo, é preciso entender que, especialmente falando do Islamismo - religião muçulmana - de fato, algumas interpretações dos livros sagrados podem estimular ações mais agressivas. Principalmente, porque o Corão - livro sagrado dos islamitas - não diferencia o aspecto religioso do aspecto civil. Enquanto no cristianismo, há essa diferenciação clara entre a política do Estado, “dá a César o que é de César, e à Deus o que é de Deus”, e a religião. Assim, há uma liberdade religiosa, há um respeito pela liberdade religiosa. Desse modo, os países cristãos tendem a conviver com maior tranquilidade. No Islamismo não é bem assim, pois o Código civil é o próprio Corão para muitas nações. O Corão não diferencia essa realidade do Estado laico civil do Estado religioso, por isso, se verifica extremismo e atos terroristas com maior frequência na religião Islâmica do que no Cristianismo. Na tradição histórica islãmica existe o conceito de “dār al-Islām” que significa “Casa da submissão”. Islām significa submissão; submissão à Deus, à Alá. Então, “dār al-Islām” se refere àqueles que são fiéis e convertido ao Islã. Entretanto existe outra parte que eles chamam de “dār Al-Arab” que significa “Casa da guerra” ou “Casa do conflito”. Ou seja, todos os que estão no “dār Al-Arab” não são convertidos, são infiéis. Sendo assim, aqueles que não foram convertidos ao Islã são tratados com a guerra. Muitos interpretam ao pé da letra, mas isso comprova que, na civilização islãmica, não há uma diferenciação clara entre religião e Estado. E isso é interpretado pela maior parte das nações como um perigo de segurança nacional. É preciso encontrar uma forma de lidar com esses países radicais islãmicos.
C.I: Qual o objetivo do Estado Islãmico?
Junior: Esse grupo atua no norte do Iraque e, também, na Síria. Ele aproveitou da guerra na Síria e de sua instabilidade para tentar resgatar o poder de um grupo radical islamita e controlar um território. A pretenção deles é estabelecer um Califado. Ocupar todos os locais não islamizados por meio de atrocidades absurdas, ou seja, perseguindo e matando pessoas em nome do que chamam de religião. O Califado é sem dúvida a maneira mais absurda que já surgiu em termos de terrorismo, pior até que Bin Laden e a Al-Qaeda. E, por isso, a tentativa dos países ocidentais é tentar identificar e conter esses indivíduos. Em países como a Inglaterra, França e Alemanha tem-se visualizado um problema de jovens islãmicos (nascidos na Europa) simpáticos a esse discurso radical. Assim, vão para lugares como a Síria à fim de lutar pelo Estado Islãmico. Por isso, a União Europeia (UE) tem enfrentado, atualmente, um problema de migração e contenção do fluxo europeu.
C.I: As diferentes intervenções dos Estados Unidos e dos países europeus no Oriente Médio contribuíram para aumentar a raiva e a rebelião de certos setores muçulmanos?
Junior: Na época de Bin Laden, com aquele terrorismo midiático havia essa clara identificação dos EUA como o grande inimigo, “grande Satã” como eles diziam. Tudo começou com a Guerra do Golfo (1990-1991) quando Bin Laden posicionou os EUA como um dos principais alvos, pois o reino saudita permitiu o estacionamento das tropas americanas, que estavam indo para o Kuwait se livrar do jugo de Saddam Hussein, no seu território. Bin Laden viu isso como uma profanação do território sagrado do Islã por conta das cidades sagradas na Arábia Saudita, Meca e Medina. Para ele foi uma grande ofensa que dali em diante pautou os EUA como inimigo público principal. Contudo, a política antiterror do presidente americano Barack Obama foi um fracasso e tornou os EUA ainda mais inseguros do que antes. Não se conseguiu conter esses radicais que chegaram ao poder, por exemplo, no Egito, Líbia e Síria. Além do acordo nuclear feito com o Irã. Algo totalmente sem garantia por parte do governo iraniano que pode a qualquer momento “blefar”. E, por fim, abandou seu tradicional aliado, Israel, que é a única democracia verdadeira da região. Agindo dessa maneira, os EUA, sobretudo nesse último governo, enfraqueceram sua política de segurança.
C.I: Depois de ataques como ao jornal Charlie Hebdo e outros haverá uma onda “islamofóbica” na Europa?
Junior: Essa onda eu não digo que é islamofóbica, pois é um termo muito impreciso, ainda mais hoje em dia que tudo se tornou politicamente incorreto. Na verdade o que acontece é uma reação tanto da população que não via nos políticos uma representação, quanto de alguns setores da sociedade que tentam se defender. Porque a política de migração de muitos países, de abrir portas, de pouco controle - principalmente Inglaterra e França -, possibilitou a entrada de grupos radicais islamitas. Esses grupos se organizaram e já representam um perigo real. O ataque a Charlie Hebdo é apenas uma consequência desses erros cometido nas políticas de migração e, também, nas políticas de segurança, haja vista que não se vigiou certos grupos extremistas. Acreditou-se que eles iriam se integrar à sociedade europeia, porém o desejo deles é impor a sua tradição e religião. Então, foi uma falha da política de segurança dessas regiões e eles são diretamente responsáveis por essa tragédia que aconteceu. Alguns bairros nos subúrbios de Paris e Londres com população majoritariamente islamita já tentam implementar a Chari’ah (lei islâmica) que é o Código civil baseado no Corão. Coisas absurdas, como restrição dos direitos das mulheres, controlando a vida dos cidadãos, etc. Isso é perigoso, pois a resposta de grupos extremistas anti-islâmicos começa a ser maior.
C.I: A raiva dos terroristas está dirigida principalmente contra os Estados Unidos e Europa ou também contra outras regiões do mundo como, por exemplo, a América Latina? Estamos imunes a esses ataques?
Junior: Não. Eu acho que não existe nenhum tipo de imunidade. A busca da implantação de uma ideologia e de um domínio é muito forte. O Islã é territorial, então, para alguns grupos terroristas é preciso que se tenha o controle de territórios. E a ordem é: onde estiver um islamita que pense dessa forma, deverá haver a tentativa de se ter esse domínio. Na Tríplice Fronteira (Paraguai, Uruguai e Argentina) já há registros de atividades ilegais de terrorismo. Claro que o Brasil não vive um problema de terrorismo de cunho religioso, mas é preciso monitorar. Através da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e Polícia Federal, é necessário um controle maior e um sistema de monitoração mais efetivo para prevenir esses problemas. É óbvio que EUA e algumas nações europeias e seus aliados representam um baluarte da população ocidental, então para os grupos radicais islamitas seriam alvos principais. Contudo não é recomendado nem inteligente, em termos de segurança, fechar os olhos para a ameaça de terrorismo. Veja o que aconteceu na Argentina. Um ataque à entidade judaica que comprovadamente tem a ligação com o governo iraniano. Recentemente, no Brasil, houve uma acusação de um ex-assessor do governo Dilma que era ligado a interpretações radicais do Islã. Enfim, tem que haver um bom serviço de inteligência e contraterrorismo para monitorar determinados indivíduos que tenham ligação com o Estado Islâmico.
C.I: No Brasil, qual o principal tipo de terrorismo existente?
Junior: O principal, no caso do Brasil, não é o terrorismo de cunho religioso, mas sim os narcoterroristas. Indivíduos das FARC, que cruzam fronteiras, contrabandistas indo e voltando…A porosidade das fronteiras: esse sim é o nosso principal problema. E eu digo mais, o chamado terrorismo de Estado. O monitoramento dos indivíduos civis por parte dos próprios agentes do governo que deveriam proteger as nossas liberdades civis mas, ao contrário, estão muitas vezes nos vigiando e cerceando nossa liberdade.
C.I: Então nossas políticas de relações nas fronteiras não estão boas?
Junior: Não. Elas nunca foram boas. As fronteiras no Brasil, apesar da dificuldade de monitoramento devido ao gigantismo, nunca tiveram um controle eficaz. O problema não é apenas a questão das fronteiras, na minha opinião é do alinhamento ideológico que se faz e que se coloca acima da questão de segurança nacional de soberania. Por exemplo, alinhamento com o governo venezuelano, equatoriano, boliviano…Isso cria uma porosidade de fronteira. A questão das FARC - ligações de terroristas ligados ao Brasil -, entre outros. Então, falta uma condenação pública e um controle. O que tem sido feito pelas Forças Armadas - Marinha, Exército e Aeronáutica -, desde 2008 com a estratégia de defesa nacional, é tentar transferir batalhões do Sudeste e do Sul para a Amazônia à fim de tentar controlar um pouco essa região. Entretanto ainda falta obviamente muito investimento para tentar melhorar a situação dessa localidade.
C.I: Maior educação sobre o mundo muçulmano e mais informação não ajudariam a eliminar a discriminação, entre outros problemas que acontecem quando o assunto é terrorismo?
Junior: É óbvio. Mas de certa forma o Brasil não convive diretamente com uma ameaça real islâmica. Assim, talvez não exista uma preocupação. Falando da questão de estudar e buscar compreender essas diferenças é complicado em países que sofrem realmente a ameaça islâmica. Todas aquelas nações que sofreram atentados, como EUA, França, Inglaterra, Espanha, para esses que sentiram na pela o que é o terror islâmico é difícil você explicar para eles isto: isso é uma minoria radical, não são todos assim.
C.I: Não prevalece a diplomacia em relação ao uso da força nesses países?
Junior: É, exatamente. Basta lembrar da declaração absurda da presidente quando o Estado Islâmico começou a decapitar pessoas e matar crianças. Ela disse em Nova Iorque que seria preciso dialogar. Meu Deus do céu! Como você vai dialogar com indivíduos que querem te decapitar? Então, é claro que a linguagem que esses terroristas conhecem é uma só. A linguagem da força. Logo, é preciso contenção, a política de contraterrorismo.
C.I: Ao falar sobre terrorismo, pensamos intuitivamente sobre segurança internacional. Há uma carência em estudos nessa área?
Junior: Na área do terrorismo, a maioria dos estudos vêm da academia americana. No campo das relações internacionais existe uma subáreas de conhecimento, a segurança internacional que se preocupa com o fenômeno do terrorismo. Houve uma explosão de interesse pós 11 de setembro e isso acabou contribuindo com o aumento de publicações nesse sentido. Eu diria que o problema não é acadêmico. A produção acadêmica sobre a questão do terrorismo não é pequena, no entanto não há uma conexão e proximidade entre estudos acadêmico e política de gabinete antiterrorista. São coisas distintas. Uma coisa é a política operacional que requer estudos estratégicos e específicos e outra coisa é a compreensão conceitual e teórica de porquê o terrorismo e as fundamentações religiosas acontecem, as origens do Islã, etc. Nesse campo ainda fica a história da torre de marfim. A academia produzindo para seus pares - professores e acadêmicos escrevendo para outros acadêmicos -, a população em geral longe e distante disso e os gabinetes antiterror e as agências de inteligência com as suas próprias práticas.